Politica

Nas entrelinhas


Isolamento malandro

No início da noite de ontem, o Brasil ultrapassou a Grã-Bretanha e assumiu o posto de segundo país com o maior número de mortes por covid-19. Estamos falando de mais de 41,8 mil vidas perdidas desde 17 de março, quando o coronavírus deu início à sua marcha letal por estas bandas. Após quase três meses desde o primeiro óbito, não há sinal de arrefecimento na escalada da pandemia – já passamos de 828 mil casos confirmados, e a curva de infectados continua dolorosamente ascendente. Ainda está distante o sonho de ver o tão esperado “achatamento da curva”, fator considerado essencial para justificar a flexibilização do isolamento social, única medida comprovadamente eficiente para diminuir a propagação do vírus. No entanto, tornou-se cena comum nas cidades brasileiras, além dos inúmeros hospitais em regime de guerra e das centenas de covas abertas em cemitérios, o movimento de milhares de pessoas a circular pelas ruas, a aglomerar-se em centros comerciais, a insistir na rotina de antigamente, enquanto o “novo normal” mostra a cada dia sinais mais eloquentes de que nossa vida nunca mais será a mesma após a covid-19.

Assistimos, incrédulos, a governadores e prefeitos autorizarem a retomada de atividades não essenciais sem ao menos apresentar uma sólida justificativa científica para assegurar aos cidadãos de que sim, eles podem trabalhar, fazer compras, caminhar no calçadão, ir ao cabeleireiro, frequentar a missa, consultar o médico, sem receio de se infectar pelo coronavírus. Nenhuma autoridade médica ou sanitária respeitada indica ser este o momento adequado de flexibilizar as medidas de restrição. Todos os países que diminuíram o rigor do isolamento só mudaram o protocolo de segurança após obterem dados consistentes de que a pandemia passou da fase crítica e que, portanto, o fantasma de Milão estaria afastado. Infelizmente, nenhum chefe do Executivo estadual ou municipal no Brasil levou em conta os alertas de maneira inequívoca e rigorosa. Deduz-se, então, que a reabertura promovida por estados e municípios ocorre por motivações políticas, e não sanitárias.

De resto, essa tem sido uma característica marcante da covid-19 no Brasil. Poucos países tiveram uma politização tão radical em relação à pandemia, e esse fenômeno verde-amarelo permite buscar uma ligação entre crise política e avanço da doença. Desde o início da doença o país entrou em um labirinto com discussões que tergiversavam ou simplesmente negavam a gravidade da covid-19. Quantas e quantas vezes perdemos tempo, vidas e recursos com debates equivocados. “Gripezinha”; previsão de apenas 2 mil mortes; hidroxicloroquina; isolamento só para idosos; troca de ministros; novo modelo de divulgação de dados; recomendação de invadir hospitais para verificar a ocupação de leitos, são algumas das propostas estéreis ou irresponsáveis que fomos obrigados a discutir, impedir, repudiar nestes meses de pandemia. Paralelamente às discussões estapafúrdias, temos de atentar a situações realmente graves, tais como a suspeita de corrupção a pesar sobre governadores, investigados pela Polícia Federal; ou administradores públicos que entram em desgaste com o Judiciário porque não apresentam razões consistentes para justificar a flexibilização; ou porque, no outro extremo, são obrigados a aplicar o lockdown.

A miséria da política brasileira fortaleceu a ação letal do coronavírus, que encontrou terreno fértil para tirar vidas em meio a tanta discórdia, cizânia, desavença, desunião. O paradoxo brasileiro está evidente: fique em casa, mas você pode ir para rua. Se você tiver máscara e um pouco de álcool em gel, está tudo certo. Você está liberado para comprar aquela calça essencial para sua vida, fazer um lanche na rua ao invés de comer na própria casa, quem sabe até participar de uma festinha. Mas mantenha a distância de dois metros, para mostrar a sua consciência com o coletivo. E assim caminha o nosso isolamento malandro, nossa velha e conhecida mania brasileira de fazer tudo pela metade, de queimar etapas, de contornar as regras, de nos acharmos muito espertos, de termos a presunção de que nada de mal acontecerá conosco, e sim com os outros.

A covid-19 já deu mostras eloquentes de que somente uma ação coordenada é capaz de conter o avanço da pandemia. Um amplo movimento político e social, típico em sociedades com coesão suficiente para se mobilizar ante um perigo comum a todos, é condição sine qua non para combater de forma consistente ao terrível cotidiano de mortes diárias. Infelizmente, a luta política desmedida, a profunda desigualdade econômica e as diferentes realidades neste país continental impõem sérios obstáculos a uma reação contra o coronavírus. Assim como o achatamento da curva, ainda impensável no país que a cada dia perde em média mil vidas, não é possível enxergar no horizonte o momento em que o Brasil, unido, enfrentará de forma resoluta o inimigo que está entre nós. Infelizmente, estamos isolados de lideranças. Nesta pandemia, é cada um por si.