O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro deixou o governo atirando contra o presidente Jair Bolsonaro. No pronunciamento em que explicou as razões de ter pedido demissão, na sede do ministério, ele acusou Bolsonaro de reiteradas tentativas de interferência política na Polícia Federal, e disse que entregava o cargo para preservar a biografia. A crise política que se instaurou em consequência das acusações de Moro ainda está longe de ser concluída.
Na última semana, vários depoimentos foram prestados no inquérito que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), por iniciativa da Procuradoria-Geral da República (PGR), para investigar o caso. Um dos pontos principais do processo é o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, apontado por Moro como prova de que o presidente o pressionava a fazer substituições na PF por interesses pessoais, sem justificativa para as mudanças.
Independentemente do resultado das denúncias contra Bolsonaro — que pode até chegar a um processo de impeachment —, a situação do ex-ministro também é complicada. Se não tiver cautela, o homem que abandonou décadas de magistratura pode ser acusado de prevaricação, por não ter apontado um possível crime de responsabilidade do ex-chefe enquanto estava no governo.
Câmara
Segundo analistas, a divulgação total do conteúdo da gravação da reunião de ministros em que Bolsonaro teria revelado o interesse de defender familiares e amigos de possíveis investigações é a mais poderosa carta na manga de Moro. Mesmo assim, ninguém crava o resultado da guerra de informação e de notícias truncadas. Afinal, o destino do presidente dependerá não só da Justiça, mas, sobretudo, do julgamento político da Câmara dos Deputados.
“Moro fez declarações gravíssimas. E não faria se não tivesse provas. Tudo o que foi falado até agora, a meu ver, já seria indício de crime de advocacia administrativa e de obstrução à condução de provas. Mas o assunto é sensível. No momento, a bala de prata que ele tem é a divulgação da íntegra da gravação da reunião, além das mensagens que motivaram sua saída do cargo”, ressalta Marcelo Aith, especialista em direito penal e direito público e professor de pós-graduação na Escola Paulista de Direito.
O próximo passo da defesa de Moro, na avaliação de Aith, deverá ser a exigência de publicidade dos detalhes do vídeo — o máximo que conseguir. E também coletar fatos contundentes para o reconhecimento das provas pela Procuradoria-Geral da República (PGR). “Nada mais justo para a nação que se abra um processo criminal. E tudo o que se tem, até hoje, seria suficiente para o procurador-geral Augusto Aras dar início a uma representação”, avalia Marcelo Aith.
No entanto, para o juiz Luís Carlos Valois, da Vara de Execuções Penais de Manaus e diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), o Brasil tem especificidades. “Tiraram uma ex-presidente pela acusação de pedalada, mas sem crime”, considera. “O que prova que o pedido de impeachment não segue o rito legal. Somente interesses políticos”, afirma Valois. São os movimentos políticos, na avaliação do magistrado, que determinam o uso da prova contra ou a favor de A ou de B.
Indícios e provas à luz de interpretações
O advogado Rodrigo Fuziger, professor da pós-graduação da Universidade Mackenzie, observa que, no depoimento que prestou à Polícia Federal, Sergio Moro afirmou que a acusação e o julgamento do presidente por eventuais crimes não caberiam a ele. Para Fuziger, a prudência do ex-juiz da Lava-Jato em não fazer acusações frontais pode ter fundamento em dois pontos: “em primeiro lugar, há o temor de que a omissão dele, ainda como ministro da Justiça, em não relatar atos ilegais do presidente poderia ser passível de uma interpretação, por parte do procurador-geral da República, Augusto Aras, de crime de prevaricação”.
Por outro lado, ainda que não haja essa rigorosa perspectiva por parte de Aras de torná-lo réu em um processo, “há ainda a possibilidade de que Moro tenha buscado resguardar o capital de sua reputação, limitando-se a afirmar que, assim que vislumbrou a probabilidade de atos concretos de desvio de função por parte do presidente, optou por sair do governo”, diz o advogado.
Como o direito é passível de interpretações, tudo pode acontecer, salienta Fuziger. “Dessa forma, o pronunciamento e depoimento de Moro apontam indícios gravíssimos, mas, por si, parecem insuficientes para uma denúncia do PGR contra o presidente, sendo, portanto necessário avaliar vários outros elementos probatórios, como a reunião ministerial e conversas”, acrescenta.
Não é à toa, de acordo com fontes palacianas, que Bolsonaro se aproximou do Centrão e aparentemente fez as pazes com Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. “Aras tem defendido mais o presidente do que a Advocacia-Geral da União — que tem essa missão — e não tem cumprido seu papel com o Ministério Público. Queira Deus que o ódio não ganhe essa batalha”, destacou a fonte.
Líder da minoria no Senado Federal, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) avalia que as provas apresentadas por Moro são suficientes para formar a culpa do presidente quanto à acusação de interferência política na PF. O parlamentar pondera que o ex-juiz federal deveria ter entregado o cargo antes, uma vez que as interferências estavam em curso. “Mas isso não vem ao caso no processo”, afirma.
Pressões
Conforme relatos de Moro, as pressões para mudanças na PF, especialmente na superintendência do Rio de Janeiro, vinham acontecendo desde o segundo semestre do ano passado. A professora de direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP) e do Centro Universitário de Bauru Eliana Franco Neme opina que Moro é uma pessoa “astuta e esperta”, e acredita que ele, durante o período em que esteve no governo, juntou provas para as acusações.
“Pelo que a gente conhece dele, é uma pessoa comedida. O que pareceu (no discurso de demissão) é que ele percebeu que entrou em algo que não dava. Ele jogou 30 anos de magistratura pela janela e se meteu em uma confusão. Se eu fosse ele, já estava fazendo prova desde o dia em que entrasse (no governo). Presumo que ele tenha feito isso. Não acho que ele iria fazer tudo de peito aberto, sem escudo”, avalia.
A professora aponta que as acusações que recaem sobre Bolsonaro podem ser observadas do ponto de vista da pessoalidade e moralidade. Como funcionário público, o presidente deve ser eficiente, moral e impessoal. “Não me parece republicano que o presidente queira um ministro ou chefe da Polícia Federal que tenha uma vassalagem com ele, que tenha medo dele”, disse.
Para Eliana Franco, o presidente trouxe ao Planalto um resquício militar de subordinação. “Ainda que ele seja presidente, os ministérios têm as suas atribuições e autonomia”, afirmou. Quanto ao princípio de impessoalidade, a especialista avalia que um presidente não pode colocar no poder uma pessoa só porque é sua amiga. “É imoral isso”, frisou.
Ex-juiz reforça acusação
A revelação sobre trocas na equipe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) antes da abrupta sucessão de mudanças na Polícia Federal e de sua própria renúncia deu munição para o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro reforçar a acusação de tentativa de interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal. A defesa do ex-ministro diz que os “fatos levam à inevitável conclusão” de que a manifestação de Bolsonaro na reunião ministerial de 22 de abril, sobre a troca na “segurança do Rio”, refere-se à Superintendência da Polícia Federal fluminense.
O advogado do ex-ministro da Justiça, Rodrigo Sánchez Rios, diz, ainda, que “aguarda respeitosamente” a divulgação do vídeo da reunião no Palácio do Planalto — peça chave do inquérito Moro contra Bolsonaro — na qual, segundo ele, “as intenções das alterações na Polícia Federal ficarão ainda mais evidenciadas”. Ao Supremo, Moro pediu que fosse divulgada a íntegra do vídeo, “como verdadeira lição cívica”. A decisão final pelo levantamento do sigilo será tomada pelo ministro Celso de Mello na próxima semana.
Em nota divulgada ontem, Moro faz alusão à reportagem do Jornal Nacional, da TV Globo, exibida na quinta-feira. Ela mostra que, em 26 de março, quase um mês antes da reunião de abril, o general André Laranja Sá Correa — então diretor do Departamento de Segurança Presidencial do GSI — foi promovido por Bolsonaro para exercer o cargo de Comandante da 8ª Brigada de Infantaria Motorizada. A direção do Departamento de Segurança Presidencial acabou ficando com o então adjunto, Gustavo Suarez, promovido ao cargo titular da repartição.
Para o ex-ministro, a revelação mostra que o presidente não enfrentou problemas para fazer mudanças no GSI, colocando, em xeque, versão de Bolsonaro de que estava agastado com sua segurança pessoal — missão do gabinete — e que não se referia à PF quando reclamou na reunião ministerial.
“Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f… minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira”, disse Bolsonaro na reunião.