Em um cenário de mais de 11 mil mortes, 160 mil casos confirmados do novo coronavírus e com sistemas de saúde em colapso, o Brasil convive com centenas de obras na área da saúde paralisadas. Em todo o país, são, pelo menos, R$ 613,9 milhões do governo federal aplicados em 376 empreendimentos inacabados (entre reformas, ampliações e construções), conforme dados do Tribunal de Contas da União (TCU).
Os valores são referentes a recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e da Caixa Econômica Federal, mas o governo também realiza repasses para os fundos de saúde municipais e estaduais, que são usados para financiar as construções. Somente nos sete estados com mais mortes por coronavírus no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Amazonas, Maranhão e Pará), estão 36% do valor total: são R$ 226,9 milhões investidos em obras na área da saúde que estão paralisadas.
Os dados do TCU são resultado de uma auditoria operacional de obras com recursos federais de cinco bancos de informações (entre eles, PAC e Caixa), publicada no primeiro semestre do ano passado com base em números colhidas em fevereiro e abril de 2018. Os valores não são de empreendimentos de um período específico, mas uma somatória ao longo dos anos. No âmbito da saúde, existem obras iniciadas entre 2010 e 2017.
Presidente da Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (AUD-TCU), Lucieni Pereira diz que, nos últimos cinco anos, por conta da crise fiscal, estados e municípios reduziram a expansão da rede de saúde e tiveram necessidade de usar recursos federais para custeio. Além de verbas do PAC e da Caixa, existem repasses fundo a fundo nas categorias corrente (para custeio da rede, por exemplo) e capital (investimentos), para compra de equipamentos ou obras.
Lucieni observa que, no ano passado, o orçamento da Saúde foi de R$ 122,3 milhões. Dessa quantia, foram efetivamente pagos R$ 112 bilhões. O restante, o governo pode pagar este ano, por exemplo — e, de tudo, somente uma parcela de R$ 1 bilhão foi para despesa de capital, aquela que pode ser usada em investimentos, como obras. “É muito pouco, é irrisório. A União quase não destinou dinheiro de capital no orçamento passado”, diz.
Grande parte do orçamento de 2019 foi aplicada de forma descentralizada: dos R$ 122 bilhões, R$ 81,5 milhões foram repassados a estados e municípios. A presidente da AUD-TCU pontua que é importante avaliar como as unidades da Federação estão gastando os recursos — se a maior parte, por exemplo, está sendo usada para a folha de salários dos servidores. “Isso levanta um alerta. Porque, se eu pego o orçamento e gasto com despesa corrente, não vou desenvolver, não vou expandir.”
Ela ressalta ainda que muitas obras não seguem por falta de condições dos entes da Federação de arcar com as despesas correntes. “Expandir é muito fácil, todo mundo expande. Fazer um posto de saúde, um hospital, não é a parte mais cara. O mais caro é manter a expansão da despesa corrente. Pessoal (servidores), luz, água, telefone, medicamento”, afirma.
Ainda segundo Lucieni, a previsão é de que a União aplique pelo menos R$ 128 bilhões de janeiro a dezembro deste ano, a título do orçamento comum, e outros R$ 23 bilhões em ações de combate à covid-19. Em janeiro e fevereiro, foram executados R$ 12,6 bilhões dos recursos da saúde, dos quais 75% repassados a estados e municípios para aplicação de forma descentralizada.
O relatório do TCU considera obra parada quando a empresa executora anuncia que não dará continuidade ao empreendimento, quando há baixa execução do contrato (nos casos em que, em três meses, a obra avança menos do que 10% do previsto inicialmente) e quando não há novas medições de serviços em período superior a 90 dias.
Valor é maior
O número real de obras e os valores investidos em todos os estados do Brasil são maiores. Exemplo disso são os dados dos tribunais de contas estaduais (TCEs), que fazem levantamento de quantidade de obras paradas ou em atraso. A avaliação feita pelo TCU considera projetos com os recursos federais do PAC e da Caixa; já dos TCEs, o montante acaba sendo maior, por envolver todas as empreendimentos que possuem recursos municipais e estaduais (ainda que tenham também verbas da União).Para se ter uma noção de como o montante real no país, por estado, é maior, só no Rio de Janeiro, segunda unidade federativa com maior quantidade de mortes por covid-19, auditoria realizada pelo TCE no ano passado levantou 98 obras paralisadas, que somam R$ 243 milhões. Só de competência do estado, são seis projetos que concentram R$ 139 milhões contratados, dos quais R$ 36,2 milhões já foram pagos. As informações levantadas pelo tribunal são fornecidas pelos próprios entes (estado e municípios).
No TCE de Pernambuco, quarto estado com mais mortes e casos confirmados de coronavírus, são 56 obras paralisadas, que somam R$ 145,7 milhões, dos quais que R$ 87,6 milhões já foram pagos. Sob competência do estado, são oito empreendimentos (sendo cinco hospitais) e R$ 122 milhões em contratos (R$ 75,1 milhões já pagos). Os dados do TCE são referentes a 2018.
Em nota, a Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop) justificou que os empreendimentos foram contratados e paralisados em governos anteriores e que, em função do regime de recuperação fiscal ao qual o estado aderiu para enfrentar a crise financeira, a atual gestão está analisando cada uma delas para verificar se a demanda permanece e se é viável retomá-la. A empresa ressaltou que “realiza projetos e licitações e acompanha as obras solicitadas pelos outros órgãos públicos, que são os responsáveis por supri-la com os respectivos recursos financeiros para sua realização”.
A Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE), por sua vez, afirmou que, diante da crise que atingiu o país em 2015, a prioridade do governo foi a manutenção e a qualificação dos serviços já ofertados à população. O estado garante ter mantido todos os programas existentes no setor e garantiu o funcionamento de todas as unidades de saúde, inclusive com incremento nos atendimentos à população.
Obra do Hospital de Águas Lindas se arrasta há 15 anos
Um dos casos que exemplificam bem a situação do país é o Hospital Regional de Águas Lindas (GO), obra que se arrasta há mais de 15 anos. No momento, está paralisado. A unidade começou a ser construída para que fosse uma unidade de alta complexidade. A previsão era de 137 leitos, sendo 30 de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A região do Entorno possui 1,5 milhão de habitantes e nenhum leito de UTI. É justamente em Águas Lindas onde foi erguido o primeiro hospital de campanha do governo federal para atender a pacientes com covid-19, com investimento anunciado de R$ 10 milhões. A construção foi concluída no último dia 23, mas, até hoje, a unidade não está funcionando.
Execução é de estados e municípios
O Ministério da Saúde afirmou que, após celebração de contratos, cabe às secretarias municipais ou estaduais de saúde a responsabilidade pela contratação e execução de obras. A pasta informou que tudo é acompanhado e monitorado pela Caixa Econômica Federal.
“Os recursos são liberados conforme o andamento das obras, cuja medição é feita pela Caixa, que informa ao Ministério da Saúde para que ocorra a liberação de mais recursos. Até o momento, não há nenhum atraso em relação a repasse de obras pelo Ministério da Saúde”, pontuou. O órgão ressaltou que a gestão e o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) são compartilhados entre União, estados e municípios, e que, para apoiar a ampliação dos serviços de saúde no país, a pasta financia projetos apresentados pelos gestores locais para obras de construção, reforma ou ampliação.
Explicações
O Ministério da Saúde informou ainda que vem se reunindo com gestores locais, em alguns casos com a participação dos ministérios públicos federal (MPFs) e estaduais, para buscar soluções conjuntas visando a retomada dos serviços e a conclusão de obras. Contudo, segundo a pasta, em alguns casos, é aberto processo para devolução das verbas com a responsabilização dos gestores locais.
Entre os principais problemas encontrados para a paralisação das obras, conforme o ministério, estão projetos e orçamentos mal elaborados, irregularidades nos processos licitatórios e alterações de normas técnicas, especialmente as ligadas à saúde. Quando os convênios são cancelados, os recursos já repassados para as obras voltam ao Tesouro Nacional.
O órgão federal garantiu, ainda, que tem apoiado os estados e municípios no fortalecimento do SUS e, que, desde o início da pandemia, repassou R$ 5 bilhões, sendo que R$ 1 bilhão pode ser usado pelos gestores locais para qualquer finalidade na área da saúde, inclusive para investimentos na estrutura local. Os demais recursos foram destinados ao fortalecimento da rede hospitalar e básica.