Companheiro de viagem
Sou fã incondicional do escritor belgo-francês Georges Simenon, ao qual fui apresentado pelo meu falecido amigo Carlos Jurandir Monteiro Lopes, jornalista, escritor, músico, guru literário e musical, parceiro nas noites boêmias do Lamas e da Estudantina, no Rio de Janeiro. Seus pequenos romances compõem um grande mosaico na literatura francesa, admirado entre outros por André Gide (O imoralista, A volta do filho pródigo), prêmio Nobel da Literatura de 1947, e nossa universal Clarice Lispector (Perto do coração selvagem, A hora da estrela), a judia ucraniana que escolheu o Brasil como sua pátria e, entre os sete idiomas que dominava, escolheu a língua portuguesa para tremer sua obra literária.
Além das histórias policiais, nas quais o famoso inspetor Maigret poderia pontificar ou não, Simenon escreveu grandes romances psicológicos, como O Burgomestre de Furnes, que trata do embrutecimento, do ódio e da avareza; O gato, o inferno doméstico de um casal de idosos, que se digladiam por meio de pequenos bilhetes provocadores; e a história do quarentão Kees Popinga, um respeitável cidadão holandês, dedicado ao trabalho e à família, ao xadrez e aos charutos, cuja maior curiosidade era apenas conhecer os passageiros do trem noturno que diariamente via passar de sua janela.
A vida de Popinga vira de pernas para o ar quando seu patrão vai à falência e resolve forjar a própria morte. O pacato cidadão, num surto inexplicável, embarca numa viagem sem volta num trem noturno para Paris, no qual comete o que seria um “crime perfeito”. Entretanto, seu comportamento paranoico e fora do padrão desperta suspeitas e, por isso, acaba preso. O livro é um mergulho psicológico no personagem: quem é Kees Popinga? Um maluco? Ou tão normal quanto qualquer cidadão? Sua vida cheia de regras era normal? A história tem um desfecho dostoieviskiano, impossível não lembrar do jóvel Raskólnikov, o personagem central de Crime e Castigo.
Simenon produzia de seis a sete romances por ano, de um só fôlego, trancado no escritório por duas ou três semanas. Entre um livro e outro, observa a alma das ruas e seus atores, para construir personagens e boas histórias. Sua atualidade não está no estilo, mas na trama sem julgamento moral, nua e crua, que desnuda dramas psicológicos e comportamentos sociais. Jurandir dizia que todo repórter de política deveria ler Simenon, não apenas para melhorar o próprio texto, mas para aprender a levar em conta a psicologia de suas fontes e personagens. Impossível não lembrar de suas lições na hora de escrever sobre a mais nova crise do governo Bolsonaro, desta fez, a fritura do ministro da Justiça, Sérgio Moro, que pode ser a próxima baixa na Esplanada dos Ministérios.
Federais
Não é de ontem que Bolsonaro quer nomear o diretor-geral da Polícia Federal, exonerando o delegado Maurício Valeixo, homem de confiança do ministro Moro. A tensão entre o presidente da República e seu ministro é antiga, decorre da investigação sobre o caso das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), na qual o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) é investigado, e suas conexões com as milícias do Rio de Janeiro, responsáveis pelo assassinato da vereadora carioca do PSol, Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes.
Em ambos os casos, porém, as investigações estão na esfera do Rio de Janeiro. Entretanto, Flávio Bolsonaro, por ter direito a foro especial, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). As investigações chegaram a ser congeladas pelo presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, em liminar que desautorizou as quebras de sigilo fiscal pela Polícia federal sem autorização da Justiça, mas o plenário da Corte decidiu por ampla maioria autorizar seu prosseguimento. O fornecimento dessas informações pelo antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), então subordinado ao Ministério da Justiça, provocou o primeiro grande estresse entre Moro e Bolsonaro. O desfecho foi a transferência do órgão para o Banco Central (BC) e o agastamento entre ambos.
Mesmo enfraquecido, Moro permaneceu no governo, mantendo o controle sobre a Polícia Federal (PF). Agora, a corda esticou novamente, por duas razões. Primeiro, a investigação aberta pelo Supremo para investigar as fake news, sob comando do ministro Alexandre de Moraes, que está muito próxima de sua conclusão e, aparentemente, envolve deputados federais. Segundo, a pedido de Ministério Público Federal (MPF), o Supremo também vai investigar os organizadores das manifestações de domingo passado, que foram consideradas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, um atentado à democracia, ou seja, crime contra a Lei de Segurança Nacional.
Não há nenhuma informação oficial de que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) esteja envolvido no caso das fake news, tudo corre em segredo de Justiça. Na bolsa de apostas de Brasília, porém, seu nome está cotadíssimo. O do irmão Carlos, vereador no Rio de Janeiro, também. O mais preocupante, porém, é a segunda investigação. Bolsonaro foi ao ato de domingo, se estiver envolvido na sua realização, isso será considerado um fato grave. Nesse caso, segundo a Constituição, poderá ser investigado, pois se trata de ato cometido no decorrer do seu mandato, que pode ser considerado crime de responsabilidade.