O gabinete do vírus
É tarefa ingrata entender a lógica dos argumentos de Jair Bolsonaro quando ele se comunica por meio de pronunciamentos ou discursos oficiais. O presidente é muito mais inteligível quando está nos ambientes informais, como por exemplo com os populares que se aglomeram à porta do Alvorada. Nessas conversas de rua, Bolsonaro faz piada, mostra a caneta, dá resposta malcriada, torna-se mais autêntico. O presidente encontra dificuldade no momento em que precisa, por dever do cargo que lhe foi legitimamente outorgado, justificar à nação as decisões de seu governo. Foi o caso na última quinta-feira, quando anunciou a demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde. Deixando de lado metáforas rasteiras como “divórcio consensual” e frases protocolares — “reunião produtiva” e “clima cordial” —, chama a atenção o argumento principal apresentado pelo presidente para dispensar os serviços de seu auxiliar: o falso dilema entre a economia e a saúde. “Quando se fala em saúde, fala-se em vida. A gente não pode deixar de falar em emprego: uma pessoa desempregada estará mais propensa a sofrer problemas de saúde do que uma outra empregada”, argumentou o presidente.
Ora, até onde se sabe, não é atribuição do ministro da Saúde zelar pela preservação dos empregos. Não cabe a ele trabalhar pelas medidas necessárias para combater os efeitos econômicos da Covid-19. Essa missão é endereçada a outro prédio da Esplanada dos Ministérios, mais precisamente o da Economia. A maior preocupação do Planalto deveria se voltar para a pasta comandada por Paulo Guedes, e não por Mandetta. Ante a magnitude da crise, o mais sensato seria buscar uma união de forças políticas e empresariais para estabelecer condições emergenciais que socorram o setor produtivo e protejam os trabalhadores do desemprego e os vulneráveis da miséria absoluta. Ocorre que a politização, tão pestilente nos debates sobre isolamento social ou no uso de medicamentos no tratamento de doentes da Covid-19, também contagiou essa frente, dificultando a adoção de medidas mais eficientes. Prevaleceu o confronto entre o Planalto e o Congresso, o terrorismo de empresários ameaçando demitir, as carreatas com manifestantes de máscara e vidro fechado reivindicando a reabertura do comércio. Mais uma vez, o conflito falou mais alto do que o diálogo.
Reconheça-se, é possível observar um esforço da equipe econômica em uma contraofensiva para deter os danos causados pelo novo coronavírus. Ocorre que esse esforço, no estágio em que se encontra, é insuficiente para evitar uma tragédia social. Essa dificuldade, no entanto, não pode ser atribuída às medidas defendidas pelo Ministério da Saúde. Ao demitir Mandetta, Bolsonaro demonstra que está disposto a assumir o risco de reduzir o isolamento social antes de a pandemia atingir o nível mais grave de contágio no país. Ontem, na posse do novo ministro, Nelson Treich, o presidente foi explícito: “Essa briga de começar a abrir para o comércio é um risco que eu corro, porque, se agravar, vem para o meu colo”. Caberá, portanto, ao novo titular da pasta da Saúde encontrar a fórmula que atenda aos anseios presidenciais e dê sustentação ao SUS, cada vez mais sob risco de colapso ante a mortífera curva exponencial da Covid-19 no Brasil.
Na tortuosa justificativa para demitir Mandetta, Bolsonaro elogiou o valor do ministro, mas considerou seu trabalho inadequado. “Não condeno, não recrimino e não critico o ministro Mandetta. Ele fez aquilo que, como médico, ele achava que devia fazer”, disse. O presidente não o condena, mas o demite. A saída de Mandetta mostra que o gabinete do vírus tem força para derrubar o ministro que, do ponto de vista da saúde pública, cumpria seu papel e vinha fazendo um trabalho amplamente reconhecido. Esse gabinete é quem está com as cartas do baralho a partir deste momento.
A equação econômica não fazia parte da pasta de Mandetta. Mas ele pagou o preço. Espera-se que a população brasileira não tenha de pagar um preço muito maior — com a própria vida — pelas mudanças iminentes na condução da política de combate ao novo coronavírus.