Na despedida do Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta fez questão de deixar um alerta para seu sucessor, Nelson Teich, e para a sociedade: o país não está livre do pico de infecções pela Covid-19. A equipe que se retirou ontem da linha de frente do governo, na guerra contra a pandemia, há tempos adverte que o momento crítico pode ser entre a última semana deste mês e a primeira quinzena de maio.
“O sistema de saúde ainda não está preparado para uma marcha acelerada (de infecções)”, afirmou. Segundo o ex-ministro, “o sistema tem que se fortalecer mais” antes do fim da quarentena — como vem forçando o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores mais fiéis —, citando a importância de compra de equipamentos. “Temos coisas que podem melhorar a performance do sistema para que ele não chegue tão perigosamente em nível de colapso”, acrescentou.
Mandetta já sabia que de ontem não passava à frente da pasta. Logo cedo, conversou com Bolsonaro sabendo, antecipadamente, que seu ciclo se encerrara. “A conversa com o presidente foi tranquila. Tenho por ele respeito e ele, por mim. É só uma questão de foco”, disse o ex-ministro a jornalistas, ao sair pela garagem do Ministério, na noite de ontem, depois do discurso de despedida, no auditório da pasta. Mas, antes de cruzar a porta de saída, ele percorreu o prédio do Ministério e inaugurou sua foto na galeria dos ministros, junto com alguns funcionários.
Minutos antes, no discurso, o ex-ministro agradeceu a Bolsonaro pela oportunidade. Disse entender o presidente, salientando que ele possui “muitos outros olhares”.
“Sei da dificuldade do peso da decisão dele. Ter que decidir em que momento a economia deve retornar à normalidade, o impacto disso no emprego. O presidente é extremamente humanista, pensa também nesse momento pós-corona”, afirmou. O ex-ministro espera que a condução da pasta se mantenha com base na ciência. “Ciência é luz. É através dela que vamos sair dela (a pandemia)”, ressaltou.
Mandetta agradeceu diretamente aos servidores. Pediu para que não tenham medo e que não façam “um milímetro” diferente daquilo que deveriam fazer. Enquanto falava, foi abraçado pelo secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira, cuja demissão recursou na quarta-feira –– afirmando que a equipe sairia junta do Ministério. Ao sair do auditório, foi tão aplaudido quanto na chegada.
Na prática, a demissão de Mandetta, em um momento de pico da pandemia, representa não apenas a mudança de diretriz sobre a condução da crise provocada pela Covid-19, como uma inflexão no governo. Em conversas reservadas, Bolsonaro chegou a dizer que a troca também abre caminho para outras substituições na equipe de 22 ministros.
Com a exoneração, o presidente contrariou, mais uma vez, o discurso de que seus auxiliares têm carta branca para agir. “Rogo a Deus e a Nossa Senhora Aparecida que abençoem muito o nosso país”, escreveu Mandetta no Twitter. A troca no Ministério da Saúde foi publicada, também ontem, na edição extra do Diário Oficial da União (DOU), junto com a nomeação do substituto, Nelson Teich.
Rota de colisão
Remanescente do Ministério original montado por Bolsonaro no início do governo, Mandetta foi sacado 49 dias após o registro do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil. A principal divergência entre os dois era o isolamento social e a utilização da cloroquina e da hidroxicloroquina como pilares do tratamento contra a Covid-19. O ex-ministro sempre orientou a população a ficar em casa e evitar aglomerações, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), a fim de evitar um aumento brusco de casos e sobrecarregar o sistema de saúde. Da mesma forma, insistiu várias vezes que o medicamento, utilizado contra doenças como malária e lúpus, carece de comprovação de que é eficiente no combate ao novo coronavírus.
O presidente vai na contramão do distanciamento social, pontuando, em diversos momentos, que a economia do país não pode parar, e que as pessoas devem trabalhar. Bolsonaro manteve posição favorável ao relaxamento de medidas restritivas, como o fechamento de comércios. Apesar das orientações do ministro e de outras autoridades sanitárias, o presidente visitou regiões de Brasília nas últimas semanas. No último passeio, aliás, disse que ninguém tolheria seu direito de ir e vir.
Ao falar sobre medidas contra o coronavírus, Mandetta afirmou que devem ser seguidas “as orientações das pessoas que estão mais próximas, e que estão em contato com o sistema de saúde”, citando primeiro os prefeitos, depois os governadores e, por fim, o próprio Ministério. Bolsonaro tem enxergado que as decisões dos governadores, que implementaram medidas restritivas em seus estados, embutem interesses políticos –– considera que alguns deles querem se cacifar, desgastando-o para a eleição de 2022. Além de eleger João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) como inimigos, o presidente somou mais um, seu ex-grande aliado Ronaldo Caiado (GO), à lista de desafetos.
“Tenho por ele (Bolsonaro) respeito e ele, por mim. É só uma questão de foco”
Mandetta, sobre as divergências com o presidente
“Temos coisas que podem melhorar a performance
do sistema para que ele não chegue tão perigosamente em nível de colapso”
sobre o risco de suspender o isolamento social antes da hora
“O presidente é extremamente humanista, pensa também nesse momento
pós-corona”
sobre a visão de Bolsonaro de que a economia pode entrar em depressão
“Ciência é luz. É através dela que vamos sair dela (a pandemia)”
sobre em que bases devem ser tomadas as decisões no Ministério
Cronologia de um conflito
Domingo, 15 de março
Na primeira manifestação explícita de desprezo pelas orientações de Mandetta e do Ministério da Saúde, Bolsonaro desce a rampa do Palácio do Planalto e cumprimenta apoiadores –– quando a recomendação era a de evitar aglomerações. Filmando para as redes sociais bolsonaristas, o almirante Antonio Barra Torres, diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que passou ali a ser cotado para assumir o comando da Saúde. O gesto de Bolsonaro fechou uma semana tensa, pois seus apoiadores haviam marcado um protesto contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Quando se pensava que o presidente desestimularia a manifestação, atuou apenas para que o mote dos atos fosse outro –– mas estimulou a saída em grupos às ruas.
Sábado, 28 de março
Mandetta defendeu enfaticamente o isolamento social e, na coletiva à imprensa, repetiu a necessidade da medida em pelo menos três oportunidades. Ficou claro, ali, que o ex-ministro estava em rota de colisão com Bolsonaro, pois, dias antes, dera declarações alinhadas ao presidente, defendendo a quarentena apenas para idosos e pessoas vulneráveis. Antes, participara de uma reunião tensa, no Palácio do Planalto, com Bolsonaro e outros ministros. Nela, o então ministro teria avisado ao que não endossaria o isolamento vertical.
Segunda-feira, 30 de março
O governo decide que todas as entrevistas coletivas devem ser no Palácio do Planalto, e não mais no Ministério da Saúde. Ficou explícito que a ideia era tirar o foco de Mandetta e, de alguma forma, tutelá-lo.
Quinta-feira, 2 de abril
Primeira crítica direta de Bolsonaro a Mandetta: em entrevista à rádio Jovem Pan, diz que “falta humildade” ao então ministro. “O Mandetta já sabe que a gente está se bicando tem algum tempo. Eu não pretendo demiti-lo no meio da crise, não pretendo. Agora, ele é uma pessoa que em algum momento extrapolou. Ele sabe que tem uma hierarquia entre nós”, lembrou o presidente.
Sexta-feira, 3 de abril
Mandetta dá o troco. Em coletiva, aconselha aos cidadãos seguirem orientações dos governos dos estados, horas depois de Bolsonaro ter atacado as ações dos governadores contra a pandemia –– as críticas tiveram como alvo, sobretudo, João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ). “Recomendamos que as pessoas, todas elas, atendam às recomendações dos governadores dos seus estados, que têm os melhores números, os melhores indicadores para propor as medidas”.
Sábado, 4 de abril
Pesquisa do Datafolha joga mais lenha na fogueira das vaidades: avaliação do trabalho de Mandetta é melhor que o de Bolsonaro. Segundo a sondagem, o ex-ministro tinha o apoio de 76% dos brasileiros. O do presidente, em contrapartida, era considerado ruim ou péssimo por 39% das pessoas, e ótimo ou bom por apenas 33%. Naquela noite, a dupla sertaneja Jorge e Mateus exibe recado de Mandetta, durante uma apresentação ao vivo na internet, defendendo o distanciamento social.
Domingo, 5 de abril
A ameça: Bolsonaro diz que “algo subiu à cabeça” de alguns de seus ministros, em conversa com apoiadores, na entrada do Palácio da Alvorada. “Eram pessoas normais, mas, de repente, viraram estrelas. Falam pelos cotovelos. Tem provocações. Mas a hora deles não chegou ainda, não. Vai chegar a hora deles. A minha caneta funciona. Não tenho medo de usar a caneta nem pavor. E ela vai ser usada para o bem do Brasil”, avisou.
Segunda-feira, 6 de abril
A tensão tinha, aparentemente, atingido o auge, sobretudo depois que rumores davam conta de que Bolsonaro demitira o ministro naquele dia. Mandetta confirma que os servidores tinham “limpado as gavetas”, inclusive as dele. Naquele mesmo dia, Bolsonaro almoçou com o deputado federal e ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS), crítico do isolamento social e apontado como candidato à vaga de Mandetta, e com a imunologista Nise Yamaguchi, entusiasta da utilização da cloroquina. Aumentam rumores de que ela seja a nova ministra.
Quarta-feira, 8 de abril
Em pronunciamento na TV, Bolsonaro defende o uso da cloroquina desde o começo do tratamento dos infectados pela Covid-19. Aproveita e volta a criticar o isolamento social, defendido pelo Ministério da Saúde, e joga a culpa da quarentena e paralisia das atividades econômicas nos governadores. E citou o cardiologista Roberto Kalil Filho, que contraiu a Covid-19 e se recuperou com a ajuda da hidroxicloroquina.
Quinta-feira, 9 de abril
Osmar Terra cada vez mais tenta se colocar na plataforma de lançamento para suceder Mandetta. Dessa vez, vaza uma conversa telefônica que manteve sobre a possível ida para o Ministério da Saúde com o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni. O diálogo parece mostrar o deputado se prontificando para tirar Mandetta do cargo.
Sexta-feira, 10 de abril
Bolsonaro volta a menosprezar a pandemia em novo passeio por Brasília, com direito a aglomerações e comprimentos depois de esfregar a mão no nariz e cumprimentar uma idosa –– ignorando totalmente o que recomenda o Ministério e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Sábado, 11 de abril
Bolsonaro visita com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado –– que dias antes rompera com o presidente ––, as obras do primeiro hospital de campanha do governo federal, em Águas Lindas, no Entorno do Distrito Federal. Novamente, não se furtou de se juntar à multidão e cumprimentar as pessoas. Mandetta acompanhou tudo de longe e não se furtou em criticar Bolsonaro pelo gesto imprudente.
Domingo, 12 de abril
Em entrevista ao Fantástico, da TV Globo, Mandetta deixa claro que as divergências entre ele e Bolsonaro prejudicavam a luta contra a pandemia. Segundo o ministro, a sociedade estaria diante de um duplo comando, sem saber se segue as regras do Ministério da Saúde ou o presidente. “Ela (relação com Bolsonaro) preocupa porque a população olha e fala assim: ‘olha, vem cá, será que o ministro da Saúde é contra o presidente, né?’”
Quarta-feira, 15 de abril
Mandetta admite que será demitido, em reunião com deputados da comissão externa da Câmara que acompanha a pandemia. “Ele (Bolsonaro) claramente externa que quer outro tipo de posição do Ministério da Saúde. Eu, baseado em ciência, tenho esse caminho para oferecer. Fora desse caminho, tem que achar alternativas”, reagiu. Nesse mesmo dia, o então secretário de Vigilância em Saúde do Ministério, Wanderson de Oliveira, pediu demissão, recusada por Mandetta. Na coletiva do dia, disse que a equipe sairia junta do Ministério.
Quinta-feira, 16 de abril
Bolsonaro se reúne com o oncologista Nelson Teich. No final da tarde, a demissão de Mandetta e sua substituição são anunciadas.