O jornal britânico Financial Times traz hoje uma longa reportagem sobre os conflitos do presidente brasileiro Jair Bolsonaro com governadores e até com o seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O "ponto de inflamação" entre o líder populista e os demais políticos é em relação a se a resposta ao coronavírus deve ou não ser dada com quarentena.
A publicação salienta que João Doria, governador do maior e mais rico estado do país - São Paulo -, recebeu ameaças de morte depois de criticar publicamente a violação das diretrizes internacionais de saúde do presidente sobre autoisolamento e distanciamento social. "O impasse entre os dois homens é apenas um ponto de inflamação em um conflito crescente entre o líder populista e o establishment político brasileiro", explicou o texto.
Após um mês de paralisação quase nacional, Bolsonaro insiste cada vez mais em reabrir escolas e empresas e trazer os brasileiros de volta ao trabalho. Ele chamou os bloqueios de "crime" e os governadores, de "matadores de emprego". Mas a retórica, salientou o FT, provocou brigas com quase todos os pesos políticos do Brasil, incluindo o próprio ministro da Saúde - que agora está discutindo abertamente com o presidente - e também poderosos governadores como Doria.
A Suprema Corte do Brasil também expressou preocupação com a posição de Bolsonaro, sugerindo que poderá intervir se houver uma ameaça à saúde dos cidadãos. "Você está preparado para assinar a certidão de óbito dos brasileiros? Você que defende a abertura, que minimiza a situação em que estamos, vai enterrar as vítimas?", perguntou Doria na segunda-feira, enquanto São Paulo lutava para encontrar cemitérios suficientes para os mortos.
Apesar de ser o centro do surto no Brasil, a cidade de São Paulo provou ser uma história de sucesso em termos de isolamento social, com a epidemia abaixo de 10% dos níveis regulares e as ruas desertas. José Henrique Germann, secretário de Saúde de São Paulo, disse que o surto teria sido 10 vezes pior se não fossem as medidas rigorosas. O jornal lembra que a estratégia está sendo espelhada pelos governadores em todo o Brasil e é apoiada por 75% dos brasileiros.
Mas a disciplina começou a cair nos últimos dias, à medida que a retórica de Bolsonaro sobre a volta ao trabalho se torna cada vez mais forte. No domingo, menciona a reportagem, centenas de seus apoiadores se reuniram em São Paulo, pedindo a renúncia de Doria. No mesmo dia, o governador de Santa Catarina disse que começaria a diminuir as restrições de trabalho e movimentação.
"O presidente conhece a alma do brasileiro como poucos. Somos um país de dimensões continentais, com 210 milhões de habitantes e pobres, com deficiências na cobertura de redes de segurança para os vulneráveis. As medidas para conter a pandemia devem ser equilibradas", disse Marco Feliciano, retratado como parlamentar e influente pastor evangélico.
O impasse com os governadores representa um "momento crítico" para Bolsonaro, disse ao FT a professora de política da Universidade Federal de São Paulo Esther Solano. O presidente já estava enfraquecido devido ao relacionamento tenso com o Congresso, à deterioração da economia e porque a maioria do povo brasileiro apoia o isolamento social, disse ela. "Agora, os governadores mais importantes estão contra ele, incluindo Doria, que, devemos lembrar, foi um aliado importante na última eleição presidencial. Em um país federal, é muito difícil para um presidente manter o poder sem os governadores", considerou Esther.
Mandetta
O conflito, no entanto, não apenas enredou rivais políticos como Doria, um conservador pró-mercados que tem ambições presidenciais, conforme o jornal. Por dias, Bolsonaro ameaçou demitir Mandetta, que ganhou aplausos de todo o espectro político por sua abordagem científica e competente da crise. "Acho que Mandetta deveria ouvir um pouco mais o presidente da República. Ele precisa de um pouco de humildade para liderar o Brasil neste momento difícil", afirmou o presidente.
O FT comentou a informação da mídia local de que o ministro quase foi demitido na segunda-feira, mas sobreviveu apenas por causa de uma intervenção de última hora da influente facção militar do gabinete do presidente. "Grande parte do furor em torno de Mandetta parece resultar de sua popularidade. Em uma pesquisa divulgada no domingo, 76% dos entrevistados disseram que seu ministério estava fazendo um trabalho ‘bom ou ótimo’. Bolsonaro, por outro lado, tem um índice de aprovação de cerca de 33%", comparou o periódico.
"Bolsonaro tem a tendência de, sempre que percebe que alguém tem mais aprovação do que ele, tentar diminuir essa pessoa, independentemente de a pessoa ser um governador ou seu próprio ministro. Ele faz isso o tempo todo ", disse Felipe Rigoni, um parlamentar do Rio de Janeiro.
À medida que a luta interna se intensifica, no entanto, o número de casos de coronavírus continua a subir, ultrapassando 12 mil na terça-feira. Mandetta disse que, como resultado da briga com seu chefe, ele não conseguiu trabalhar muito na segunda-feira e que chegou a esvaziar sua mesa para se preparar para sua demissão. Ele espera um pico de casos de vírus no final deste mês ou no início de maio. "Bolsonaro é responsável pela desobediência do isolamento social e por esses atos absurdos contra as regras de saúde", disse Flávio Dino, governador do Maranhão. "E ele permanece indiferente aos mortos, doentes e suas famílias."