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Bolsonaro muda tom e não ataca isolamento

Presidente deixa de lado as ironias e admite que a Covid-19 é uma ameaça, sem %u201Cremédio com eficiência cientificamente comprovada%u201D. Ele prega união nacional, mas diz que o efeito colateral de medidas contra o vírus não pode ser pior do que a doença e fala em proteger empregos



Passada uma semana do pronunciamento oficial em que reduziu a Covid-19 a um “resfriadinho” e desdenhou da gravidade da doença, o presidente Jair Bolsonaro voltou a se manifestar em cadeia nacional sobre a pandemia do novo coronavírus ontem e, desta vez, adotou um tom mais ameno. Mesmo não abrindo mão da ideia de que é necessário salvar a economia neste momento, o chefe do Planalto disse que “todos nós temos de evitar ao máximo qualquer perda de vida humana”. Citando o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, declarou que “todo indivíduo importa”.

“O vírus é uma realidade. Ainda não existe a vacina contra ele ou remédio com eficiência cientificamente comprovada, apesar de a hidroxicloroquina parecer bastante eficaz. O coronavírus veio e um dia irá embora. Infelizmente teremos perdas neste caminho”, frisou. “Na última reunião do G20, nós, os chefes de Estado e de governo, nos comprometemos a proteger vidas e a preservar empregos. Assim o farei.”

O mandatário do país analisou que “as medidas protetivas devem ser implementadas de forma racional, responsável e coordenada”. Para ele, ao mesmo tempo em que enfrentamos a pandemia, “devemos evitar a destruição de empregos, que já vem trazendo muito sofrimento para os trabalhadores brasileiros”. “O efeito colateral de medidas de combate ao coronavírus não pode ser pior do que a própria doença.”

Mesmo em guerra aberta com governadores e prefeitos, principalmente pelo impasse quanto ao alcance das medidas de confinamento, ele fez um pedido para que haja “união” entre os governantes e incluiu nessa missão o Legislativo e o Judiciário.

Apesar de haver um consenso para a OMS que o isolamento social é uma das medidas mais importantes no enfrentamento à Covid-19, Bolsonaro voltou a pedir que as quarentenas obrigatórias não sejam estabelecidas para todas as camadas da população. Segundo o presidente, é necessário haver um meio-termo, de modo que as pessoas possam seguir trabalhando. Para defender o argumento, ele até se valeu de falas de Ghebreyesus.

“O diretor-geral da OMS disse saber que muitas pessoas, de fato, têm que trabalhar todos os dias para ganhar seu pão diário e que os governos têm que levar essa população em conta. (Ghebreyesus) continua, ainda: se fecharmos ou limitarmos movimentações, o que acontecerá com essas pessoas que têm que trabalhar todos os dias e que têm que ganhar o pão de cada dia todos os dias?”, questionou.

Vulneráveis
Por fim, o presidente recorreu a um pronunciamento do chefe da OMS, no qual ele disse vir de uma “família pobre” e saber “o que significa estar sempre preocupado com o seu pão diário”. “Não me valho dessas palavras para negar a importância das medidas de prevenção e controle da pandemia, mas para mostrar que, da mesma forma, precisamos pensar nas (pessoas) mais vulneráveis”, afirmou Bolsonaro.

O presidente citou algumas ações já adotadas pelo governo para proteger sobretudo o emprego e a renda dos brasileiros, como ajuda financeira aos estados e municípios, linhas de crédito para empresas, o auxílio-mensal de R$ 600 aos trabalhadores informais e vulneráveis (veja reportagem na página 8), a entrada de mais de 1,2 milhão no Bolsa Família e os adiamentos do pagamento de dívidas dos estados e municípios e do reajuste de medicamentos no país.

Ele também garantiu que estão sendo adquiridos novos leitos de UTI com respiradores, equipamentos de proteção individual, kits para testes e outros insumos necessários. Segundo o chefe do Planalto, os laboratórios químico-farmacêuticos militares entraram com “força total” e em 12 dias serão produzidos 1 milhão de comprimidos de cloroquina, além de álcool em gel.

Divergências
O pronunciamento de Bolsonaro dividiu opiniões no meio político. “Gostei da postura do Bolsonaro no pronunciamento. Falou em união, listou ações, ponderou sobre os riscos à saúde e danos socioeconômicos. Não provocou. Foi bem melhor que o anterior”, disse o deputado Paulo Martins (PSC-PR), no Twitter. A deputada Bia Kicis (PSL-DF) postou: “Perfeito o pronunciamento do PR @bolsonaro”.

Já o deputado Glauber Braga (PSol-RJ) foi na direção contrária. “Bolsonaro não tem limites. Distorceu pronunciamento do diretor da OMS. É evidente que os informais precisam ter o seu ganha-pão. Mas é exatamente o que o governo federal está retardando. Hoje (ontem), Guedes mentiu e disse não poder pagar renda emergencial sem uma PEC”, afirmou. “Sentiu. Cada vez mais isolado, Bolsonaro recua e faz pronunciamento mais brando. Ficou com medo do impeachment? Continua mentindo quando diz que é do seu governo a proposta de renda mínima de R$ 600. Ele e Guedes queriam R$ 200. Aliás, cadê o dinheiro? #PagaLogoBolsonaro”, postou a deputada Erika Kokay (PT-DF).

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, acusou Bolsonaro de distorcer as palavras do diretor da OMS. “No pronunciamento, ficou claro que o diretor da OMS não foi mal-interpretado, foi deliberadamente distorcido. Além de gastarmos nosso próprio tempo com a necessidade diária de desmentir devaneios, passamos a impor igual constrangimento à maior autoridade global contra a pandemia”, escreveu, no Twitter.

Panelaços
Panelaços se espalharam pelo país durante o pronunciamento de Bolsonaro. Antes mesmo de o discurso chegar ao fim, internautas postavam, em seus perfis nas redes sociais, manifestações contra o presidente. No fim da Asa Sul, no Plano Piloto, por exemplo, moradores bateram panela do início ao fim do discurso, com gritos de “fora, Bolsonaro” e “Bolsonaro fascista”. A manifestação continuou mesmo após o pronunciamento, com alguns apoiadores gritando a favor do chefe do Executivo em meio a uma maioria contrária. Em Salvador e Fortaleza, também houve panelaços. Em São Paulo, internautas divulgaram protestos tanto em Vila Mariana quanto em Higienópolis, bairro nobre da capital. Ocorreram protestos, ainda, na Paraíba, em Minas Gerais, no Espírito Santo e no Paraná, por exemplo.

Heleno posta dados pessoais
O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, postou nas redes sociais, ontem, o resultado do novo exame feito ontem. No último dia 17, ele testou positivo para o coronavírus e ficou em isolamento por uma semana. Na segunda-feira, submeteu-se novamente à avaliação, que deu negativa para a doença. Heleno deu a notícia por meio de sua conta oficial no Twitter. “Meu novo teste para coronavírus deu negativo, graças a Deus! Agradeço o apoio e as orações de todos os amigos e amigas. Seguimos juntos na batalha por um Brasil melhor!”, escreveu. Com a mensagem, ele postou uma cópia do exame, mas se esqueceu de apagar os dados pessoais, como nome completo, RG, data de nascimento e CPF,  expondo-se a ser alvo de golpistas. Nas redes sociais, o descuido rendeu uma série de memes.

Hostilidade contra mídia
O presidente Jair Bolsonaro estimulou apoiadores a hostilizarem jornalistas que o entrevistavam na saída do Palácio da Alvorada, ontem. O chefe do Executivo foi questionado sobre o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que defende medidas contrárias às dele, como o isolamento no combate ao coronavírus. “Eu não sei o que ele falou (Mandetta). (...) Ninguém se esqueça de que o presidente sou eu. Não se esqueça de que eu sou o presidente”, enfatizou. Após as declarações, um dos apoiadores presentes na claque de Bolsonaro começou a gritar e atacar a imprensa, dizendo que a mídia “fica o tempo todo jogando os ministros contra o presidente, o presidente contra os ministros”. Outros gritaram: “Criam picuinha que não existe, vocês ficam criando coisa que não existe, jogando Mandetta contra o governo”. Bolsonaro, então, validou a fala do apoiador, permitindo que ele continuasse e mandando a imprensa ficar calada. “Pode falar. É ele que vai falar, não é vocês (sic) não”, disse o chefe do Planalto. Em meio ao desrespeito e aos xingamentos, os jornalistas se afastaram do grupo. “Mas vão embora? Vão abandonar o povo, pô? A imprensa que não gosta do povo”, ironizou o presidente.