Como o senhor vê essa abertura do ano pós-carnaval, com tensão entre os Poderes ?S Como sair disso e colocar o país num clima mais ameno para tirá-lo da crise econômica e social?
O ano passado teve uma série de tumultos e desinteligências, mas optou-se pelo substancial, aquilo que, de fato, era importante. Houve uma consciência de todos os atores de que era importante o país voltar a crescer e a fazer ajustes. A reforma da Previdência, que era algo muito difícil, é difícil em todo o lugar. Tinha sido difícil mesmo no governo Temer e isso serviu de um pouco de catarse, o debate que lá houve. Mas surpreendentemente caminhou relativamente fácil, considerando as dificuldades e até uma certa ausência do próprio governo como protagonista. Câmara e Senado trabalharam de maneira bastante autônoma e responsável. E, vamos dizer a verdade, as próprias corporações, que são muito fortes e representativas, entenderam que era preciso, por exemplo, estabelecer um limite de idade. Houve um consenso nesse sentido e o mercado avaliou bem, tanto é que a bolsa explodiu com os bons resultados. E outras reformas importantes também começaram a andar, já se havia feito a reforma trabalhista, que é extremamente relevante e votações importantes ocorreram no plano institucional, a lei de abuso de autoridade, o próprio juiz de garantia.
As desinteligências não atrapalham?
Então, acho que muitas coisas ocorreram apesar dessas desinteligências e desses tumultos políticos. Espero que este ano ocorra da mesma forma. Que, a despeito dos entendimentos e das eventuais turbulências, que podem até ser agravadas tendo em vista o contexto eleitoral, ainda que seja eleição municipal. Espero que esse juízo substancialista sobreponha-se a uma visão mais perfunctória, adjetiva, viabilize-se o interesse do país. Já estamos há alguns anos sem crescimento e, isso para nós, significa muito. Significa uma população jovem sem emprego, aqueles que, na linguagem técnica de alguns setores, são os nem nem, nem estudam, nem trabalham.
Há uma manifestação prevista para o dia 15, na qual alguns vídeos falam em um movimento contra o Congresso e contra o STF. Como o senhor avalia?
A gente deve gastar energia com questões, de fato, substanciais. Se houvesse um projeto de reforma e, de fato, o Congresso não estivesse votando, então, vamos fazer uma manifestação para que haja uma deliberação mais célere. Mas não faz sentido isto. O Congresso está deliberando de uma maneira madura, como há muito não se via. O Congresso brasileiro é um Parlamento extremamente forte. E, ao longo dos anos, isso tem mudança de tempos em tempos, ele dependia muito da ação do Poder Executivo. Normalmente, eram as lideranças que conduziam a pauta. Aqui, acolá surgia uma pauta autônoma, mas em geral, seu protagonismo dependia da coordenação do Executivo.
O Congresso não é mais coadjuvante?
Estamos vendo, nos últimos tempos, e já se via um ensaio disso no governo Temer, a ideia de uma certa parceria, tanto é que o presidente Temer chegou a falar que estava inaugurando um certo semipresidencialismo. Já havia esse ensaio de corresponsabilidade política. Pelo menos, no ano que passou, Câmara e Senado tiveram um papel importante reconhecido por todos nós, pelos resultados. Vimos a fala do ministro Paulo Guedes em Davos, em que ele apresentou todas as reformas que foram votadas. Aquilo foi avaliado positivamente. E, se a gente olhar, aquilo é mérito do Congresso. Evidentemente, está numa pauta também da economia, mas se vê que o Congresso foi parceiro institucional daquilo que foi bem avaliado em termos internacionais.
Pelo que o senhoe diz, o Congresso está cumprindo o papel dele. Pode-se dizer o mesmo do Executivo?
Tenho a impressão de que há aqui um aprendizado que todos os governos têm que exercitar e desenvolver, talvez um modelo. Qual será esse modelo? Uma Casa Civil mais forte? Uma Casa Civil que divide poderes com outras coordenações? Estaria o presidente muito sobrecarregado? Em suma, como se dividem as tarefas administrativas e as tarefas de coordenação política. Tudo isso precisa ser devidamente definido. E temos visto que, nessa seara, tem havido mudanças constantes, explícitas e outras internas. Então, ainda há um modelo institucional in fieri rae, em formação. É natural. O presidente veio de um movimento novo, de um partido novo e fez um outro tipo de coligação para governar, ou seja, dispensou a ideia do presidencialismo de coalizão e buscou apoio nas bancadas temáticas. Então, me parece que esse é um aprendizado.
A lua de mel dura quanto tempo?
Um ano é o período que o governo tem de lua de mel com o Congresso. Depois, isso pode se tornar mais tenso. O próprio presidente fez um redimensionamento, reestruturou a Casa Civil, então, tem que se esperar o resultado disso. É curioso, se a gente olhar a Constituição de 88, a prática política começa logo em 89, ela tem testado um amplo espectro de forças políticas. Se começarmos pelo presidente Collor, depois veio Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma. Sua excelência, o eleitor, se permitiu várias experiências. E agora temos uma que não estava cogitada naquele momento eleitoral inicial. Por isso, também, é natural que haja incompreensões, testes, recuos diálogos que ficam interrompidos. Mas eu tenho a impressão de que é preciso que esse grau de conflituosidade seja limitado. E até, se possivel, bastante reduzido.
O senhor faz aí uma manifestação de conciliação dos Poderes, é o momento de paz para o Brasil, é isso?
O Brasil é fantástico, primeiro, porque tem uma energia muito grande. O Brasil cresce à noite, porque durante o dia a gente dilapida as coisas positivas. A gente, como dizia Roberto Campos, não perde a oportunidade de perder oportunidade. A gente não pode mais se dar ao luxo de fazer isso. Temos que investir energia em algo positivo. Também não podemos acender o isqueiro ou fósforo para saber se tem gasolina no tanque, porque a gente já sabe a resposta. Então, acho que, se alguém apostar em disrupção, ruptura, certamente haverá resistência das instituições. Obviamente, temos um compromisso com a democracia.
Isso vale também para pedidos de impeachment que possam surgir?
O impeachment, nós sabemos, é uma bomba atômica em termos institucionais. No presidencialismo, existe para não ser usado. No nosso caso, já usamos duas vezes. Mas, em geral, você tem uma conjugação de fatores. Tem, de fato, a prática de um crime e tem condições de desmantelo do sistema econômico-político. Nos dois casos que tivemos, isso ocorreu, tanto no governo Collor, quanto no governo Dilma. No fundo, a gente fez um tipo de parlamentarização do impeachment. Quer dizer, o presidente que perde apoio no Congresso e cria um quadro de não governabilidade passa a ser suscetível de impeachment. É o que tem ocorrido. Não basta só o argumento do crime político, é preciso que haja uma condição econômica e política.
E não estamos nesse cenário?
Não se tem esse cenário. Tenho impressão até de que há um certo cansaço em relação a isso. Tendo em vista o elemento traumático que compõe o impeachment inevitavelmente, a ruptura, o sentimento de vendita, que alimenta as forças políticas que são retiradas do poder. Tudo isso me parece que fez com que as forças políticas hoje tenham consciência de que não é o melhor caminho. E isso não deveria nunca ser nem pauta política, isso é uma medida in extremis que, no nosso caso, em 30 anos, usamos já duas vezes. Portanto, de exceção, tornou-se quase uma regra.
Isso não é perigoso porque, sempre que um presidente tiver minoria, pode sofrer um processo?
Sempre é. Ao mesmo tempo, também, numa situação de ingovernabilidade, há o risco de perda de comando, como a gente teve naquele quadro inicial-final (segundo ano do segundo mandato) do governo Dilma. No governo Temer, começamos a discutir e ele se animava a discutir a ideia do semipresidencialismo, o modelo português, onde se tem o presidente mas divide também o poder com o Congresso. Num futuro não muito distante, o Brasil vai acabar tendo que discutir essa questão e acho importante que isso seja, de fato, discutido. E é bom que seja discutido num ambiente de reformas em favor do Brasil, e não contra ninguém especificamente. Se tiver que votar uma emenda desse tipo, tem que ser votada para o futuro, para próximos mandatos. E, claro, isso pressupõe uma reorganização política, menos forças políticas no Congresso. Esse número imenso de partidos não permite fazer um contrato de coalizão claro. A nossa energia deve estar voltada para a construção, e não para destruição. Isso me parece o básico.
Parte dos ataques feitos contra asinstituições Congresso e STF decorrem do fato de o governo ter dificuldade de articulação política. Daí a partir para ataques a instituições não é grave?
Devemos esclarecer a opinião pública. Vejo, por exemplo, algumas pessoas dizendo: saudades da ditadura militar. Fui aluno de universidade no período do governo militar. Vi a universidade invadida por militares. Não tenho saudade alguma. Tivemos ditadura, sim, lamentável. Não devemos ter nenhuma saudade do regime militar. Aí falam assim ah, deveríamos ter o AI-5. Pra quê AI-5? Fecha habeas corpus, fecha Congresso, as pessoas passam a ser ameaçadas. E as Forças Armadas democráticas hoje estão a serviço disto? Quem defende esse tipo de ideia diz que as Forças Armadas serão sua milícia. Estão transformando as Forças Armadas em milícia de um eventual presidente da República. Não acredito que as Forças Armadas estejam a serviço desse tipo de projeto. Isso é uma grave injúria que cometem contra as nossas Forças Armadas. A mim me parece que isso é muito grave. Ou, então, quando dizem, vamos aplicar o (artigo) 142 (da Constituição). O 142 tem toda uma história na Constituição, que é o uso e o emprego das Forças Armadas em condições limítrofes para manter a lei e a ordem. Tivemos agora o caso e Fortaleza, em função da greve e da baderna instaurada por alguns setores da polícia militar. Então, me parece que isso precisa ser dito com clareza. Quer dizer, há alguma que coisa está sendo impedida de se fazer dentro do jogo democrático? Ah, mas tem que negociar com o Congresso. É assim mesmo. O regime democrático é, de fato, dificultoso. Edita uma medida provisória e tem que aprovar no Congresso e, para isso, precisa ter maioria. Isso é assim em qualquer país democrático. Veja, (na Inglaterra), tivemos um impasse como o Brexit, até que se chamou uma nova eleição e se construiu uma maioria clara.
Esse esclarecimento não deveria vir do próprio governo?
Tem que vir de todos nós. Estamos vivendo o mais longo período de normalidade institucional da vida democrática. Já são aí 32, 33 anos da Constituição de 88, se considerarmos o período anterior, 1985, são aí quase 35 anos. Temos acertado e errado, mas dentro dos marcos institucionais, inclusive usando os instrumentos extremos, como é o caso do impeachment à brasileira, vamos chamar assim, em situações muito específicas. Então, a mim, me parece que precisamos dizer às pessoas que, de fato, não há saída fora da democracia. As reformas têm que ser feitas dentro desse ambiente. Ah, a imprensa livre incomoda! A gente quer o quê? A restauração da censura? É isso que a gente quer? E quem será o censor, que vai estar lá, no Correio Braziliense, desde as 7h da manhã, copidescando os cadernos de vocês?
A democracia corre risco?
Sabe, quando a gente vê esse tipo de discurso, a única referência que nos vem a cabeça é :"Pai, eles não sabem o que fazem". Talvez a democracia pudesse ter trazido mais progresso material, mas isso não é culpa da democracia em si mesma. Foram os desgovernos, os desacertos. Mas a democracia permitiu que chegássemos até aqui e é uma economia importante. Crescemos. É claro que o nosso desafio é muito grande porque temos uma desigualdade muito grande. Precisamos crescer e temos capacidade para isso. Mas, para crescer, precisamos ter um consenso interno. Isso é fundamental.
O ministro Celso de Mello disse que, se o presidente compartilhou o vídeo sobre a manifestação, ele não não estaria à altura do cargo. O que acha disso?
Não vou discutir a nota do decano. O presidente foi eleito dentro de uma eleição disputada, normal, e tem título, portanto, para dirigir o país. Recebeu o mandato para isto. E Isso não está em questão. Agora, a condição para todos nós exercermos a nossa função é o respeito à Constituição. E o respeito às instituições. E isso é fundamental.
O Supremo terá um papel importante este ano, com o caso Lula versus Sérgio Moro e também questões relacionadas a financas. Como o STF pode ajudar a colocar equilíbrio na relação entre os Poderes?
O Tribunal tem decidido uma série de questões, inclusive de feição governamental ou estatal. Ainda na semana passada, decidimos aquela questão importante, da antecipação da prorrogação das concessões. É um projeto que vem sendo discutido desde o governo Dilma, passou pelo governo Temer, e veio até o atual governo. É uma forma de tentar ter recursos na área de infraestrutura, fundamental para o nosso desenvolvimento. É um processo complexo, a ministra Cármen Lúcia relatou que, sem ter feito audiência pública, teve mais de 39 audiências ouvindo todo os lados envolvidos, uma questão importantíssima que o tribunal pautou e decidiu. Os desinvestimentos da Petrobras também, o tribunal decidiu a tempo e a hora pacificando essa temática que estava aí gerando tanta polêmica e, a partir daí, o governo, sem ter que fazer privatização, pôde fazer esse desinvestimento.
O tribunal está atento?
O ministro Toffoli tem trabalhado a questão das obras paradas. O país, ao longo desses anos, se deu o luxo de dar liminares para parar obras e, depois, esse assunto não voltava mais. Hoje, temos 13 milhões de desempregados, é uma leva enorme de pessoas que, em função desse desenvolvimento macambúzio, vai ficando por aí, o subemprego e tudo mais. O Tribunal está atento a essas questões e tem procurado decidir as matérias dentro do ritual constitucional e produzindo segurança jurídica. Temos nos debruçado sobre os vários temas e, é claro, temos aprendido. Vamos e voltamos, como, por exemplo, na questão da segunda instância, que refletiu na questão da condenação do Lula; o financiamento de campanha que lá dissemos que era inconstitucional, hoje estamos vendo que ajudamos a criar essa multidão de laranjas, com o financiamento quase público ou totalmente público.
O senhor chegou a falar, numa entrevista ao Correio, nos CPFs que seriam usados…
Modéstia às favas, digo que sou um mau profeta, acabo acertando.
A questão do caixa dois persiste?
Queria-se fazer um conserto porque a matriz da corrupção parecia associada às doações privadas, se se imaginou que proibindo as doações das empresas se resolveria o problema. Não se resolveu porque é claro que se continua a ter o caixa dois e as empresas passam a doar via seus donos, seus controladores. Mas são dores do processo democrático. Todos os países enfrentam algum tipo de distorção em matéria de financiamento. Portanto, estamos fazendo os nossos experimentos. É legítimo. Vamos aprimorando. No tribunal, também precisamos fazer essa autocrítica. Quando se fez a opção, se fez de boa-fé. Queria-se aprimorar mais rapidamente o sistema.
O problema é que o sistema se adequa.
Com certeza. A questão do percentual destinado às mulheres, que criou essas distorções, está aí para confirmar. Mas temos feito aprimoramentos, como na questão das delações. Temos sugerido mudanças. Temos introduzido alterações.
Em relação às delações, muita gente tem dito que vai atrapalhar a Lava-Jato...
Não. Nada disso. O importante é fazer investigações com segurança. Veja: o Ministério Público arguiu a inconstitucionalidade da lei que permitiu policiais federais fazerem as delações. Nós mantivemos a possibilidade que a lei tinha criado. Agora há muitas imputações. Veja os dois casos mais notórios: o Palocci e o Sergio Cabral. Estão dizendo que são delações feitas pelo Google.
O Ministério Público pediu para rever...
Está repudiando. Tudo isso terá de ser revisitado levando em conta a vida como ela é.
Isso é vaidade do Ministério Público?
Não necessariamente. As pessoas que se encontram em determinadas condições que já estão condenadas há vários anos ou tendem a se colocar no dilema do prisioneiro. Teoria dos Jogos. Daqui a pouco fazem delações incluindo a mãe já morta. Então precisamos ser críticos em relação a isso e saibamos relativizar o sistema. Vemos ai exageros em nome da própria investigação. Vemos aí casos de corrupção envolvendo os investigadores que começam a aparecer. Eles próprios não estão livres do vírus da corrupção.
Que casos?
Temos várias casos que a Vaza-Jato revelou, o caso Muller... Temos aquela fundação de Curitiba em que a proximidade com o dinheiro fez com que os personagens perdessem a mão.
Na lei de abuso de autoridade, a jurisprudência corrige subjetividades?
Machado de Assis escreveu que a melhor forma de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo nas mãos. O chicote muda de mãos. A Lei de Improbidade é cheia de cláusulas abertas. Por praticar um ato ilegal qualquer um está sujeito a ser tido como ímprobo. Nunca o Ministério Público questionou porque tinha o cabo do chicote nas mãos. No caso da lei de abuso de autoridade, são os promotores que vão propor as ações, são os juízes que vão julgar e cabe recursos. Interessante desconfiam deles próprios? Eles deveriam ficar preocupados se isso se tornasse um crime de responsabilidade e o Congresso fosse julgá-los. Mas não houve nenhuma mudança. Mas a Constituição prevê prestar contas, accountability. Eu defendia essa lei desde 2009. Isso estava naquele chamado pacto republicano. É extremamente importante. O Congresso trabalhou bem.
E a prisão em segunda instância?
Hoje quase metade dos nossos presos são provisórios. Dos 800 mil que nós temos, metade são provisórios. Muitas vezes nem tem condenação em primeira instância. O sistema já dá condições para os casos em que se faz necessário. Portanto, o país é um pouco assimétrico em relação à sua argumentação. Mas eu entendo a necessidade de se chegar à prisão em função da lentidão de se chegar ao trânsito em julgado. Tanto pelos usos como pelos abusos. Uso dos recursos de forma abusiva. Entendo essa discussão. O que está no Congresso hoje é a ideia de que, se a segunda instância tem que ter trânsito em julgado, tem que fazer em todas as matérias, não só penal: administrativa, eleitoral... Agora mesmo nós vimos esse debate em torno da cassação do mandato de uma senadora. Parecia muito engraçado porque as mesmas vozes que no Congresso defendem a aplicação da segunda instância estavam exigindo no caso dela o trânsito em julgado. Interessante porque, no caso dela, já havia uma decisão do TRE.
Todo mundo diz que o senhor solta demais. Como vê essa crítica?
Todas as minhas decisões, se vocês olharem, são poucas que não foram ao plenário ou à turma. Todas foram confirmadas. Portanto, não são decisões pessoais minhas. Não há nenhum caso de repercussão que não tenha sido chancelada. E são casos notórios em que não era necessária a prisão ou parecia abusiva a prisão. Tipo de prisão espetáculo, ou que a pessoa não ia fugir ou que a instrução já estava concluída ou casos até de crimes famélicos. Ainda esses dias nós demos um habeas corpus num caso reincidente de uma pessoa que tinha furtado algumas moedas no valor de R$ 4,15. Veja: isso acaba chegando aqui. Uma vez, conversando com uma colega de vocês e ela disse “por que vocês dão habeas corpus para ricos?”. Respondi que damos habeas corpus para ricos e pobres, mas vocês, jornalistas, só se interessam por ricos. Era uma brincadeira obviamente, mas é que o habeas corpos do rico chama a atenção. E as prisões hoje são home office do crime. Você leva uma pessoa que roubou uma bala e ela vira soldado do crime organizado. Temos de pensar a segurança de maneira holística.
Há várias propostas de emenda constitucional, que envolve temas como reforma administrativa, pacto federativo. Há um problema na Constituição? Por que tantos debates?
É natural. Não tivemos um pré-projeto. Nas subcomissões, os grupos corporativos conseguiram se fazer presentes no texto constitucional. Também se diz que a própria União ficou sub-representada, porque o governo federal não estava forte naquele momento. Cinco anos depois, estava previsto se fazer uma revisão. Mas, praticamente, não se fez revisão, apesar do grande trabalho de discussão. Teve a questão do plebiscito em 1993 (parlamentarismo x presidencialismo). Não obstante, apenas seis emendas foram aprovadas, a mais importante sendo a do Fundo Social de Emergência, que permitia uma certa desvinculação e foi o pressuposto do Plano Real. Da Constituição de 1988, se diz que ela tem um problema de data. Se fora a de 1989, depois da queda do muro de Berlim, não teria os ventos socializantes. Mas, a despeito disso tudo, nós temos feito as reformas no tempo possível e com as dificuldades inerentes ao processo.
Por exemplo?
Por exemplo: reforma tributária. O texto da Constituição saiu muito detalhado. Não nos esqueçamos que vínhamos de um regime autoritário. Todo mundo queria se assegurar, inclusive estados e municípios. Ah, vamos definir claramente quais são os meus tributos. Eram as circunstâncias. Mas, a despeito de todos os problemas, a ninguém ocorre encerrar a Constituição e fazer outra. Muito provavelmente, se fizéssemos isso, faríamos pior. Temos feito reformas que aprimoram o texto constitucional: conseguimos tirar o modelo estatizante, já nas primeiras reformas de FHC. No próprio governo do PT foi feita a reforma da Previdência, com as dificuldades e negociações inerentes. E virão outras reformas, até que nós nos convençamos de transferir uma série dessas disposições para o direito ordinário. Mas é preciso combinar com os atores e estabelecer uma relação de confiança. Não obstante, estamos vivendo o mais longo período de normalidade democrática desde a proclamação da República. Com todos os defeitos, é uma Constituição importante, porque ela passou na prova do pastel. Ela foi testada.
Está se fazendo muito barulho? Esse país que o senhor fala desde o início, as discussões acaloradas, os soluços diários... o senhor não tem visto isso.
Não, não é isso. Eu estou vendo e acho que devemos fazer corrigendas.
O que cada ator tem de fazer?
Devemos, formal e informalmente, cultivar o diálogo. A gente precisa entender a realidade do outro. E ver todo esse aprendizado. Ouvir forças políticas mais tradicionais, que já tenham, por exemplo Sexercido a presidência da República. Marco Maciel, por exemplo, era um acadêmico da política. Tanto é que se diz que foi o vice-presidente perfeito. Não há salvação no sistema democrático sem política e sem políticos. Quando a gente ouve a pessoa dizendo “Eu não sou político”, já começou a enganar, já começou com um discurso falso. Ninguém está em atividades governamentais, sendo eleito, sem ser político. E isto é fundamental.
Por quê?
Porque você passa a ter regras que precisam ser observadas, entre elas, a Constituição. Por outro lado, como que se forma a opinião pública? Não se inventou outra forma até agora, senão via imprensa. Nós todos podemos gostar ou desgostar da imprensa, mas não podemos nem eliminar a imprensa nem controlar o conteúdo de jornais, revistas ou televisão.
Mas as crises são decorrentes de declarações do presidente, dos filhos e de ministros.
Sem fulanizar, para usar a expressão de Marco Maciel, as pessoas falam e depois retificam. Tivemos o caso de uma pessoa responsável, o Paulo Guedes, em relação às domésticas. Essas pessoas também estão submetidas a pressões e acabam em algum momento fazendo uma ou outra fala menos adequada. Esse é um dado importante: o sujeito ter de retificar, pedir desculpas.
Mas até ele pedir desculpas, o mal-estar já foi feito, a votação já atrasou, o dólar subiu.
Nós estamos pagando por conta do experimentalismo. Saímos fazendo testes. E não é só o Brasil. A Alemanha, que é uma república muito consolidada, hoje está fazendo um novo experimento com o surgimento dessa força de extrema-direita. Nos Estados Unidos, muitos elementos tradicionais do partido Republicano não se veem representados por Trump. Há um trend no mundo. E, no nosso caso, não tínhamos partidos com essa tradição. É fundamental criar essa cultura da política. Precisamos valorizar isso.
Quando o presidente compartilha um vídeo que tem um conteúdo contra o Congresso, contra o STF, isso é crime de responsabilidade?
Não vou emitir juízo sobre isso. A gente deve tratar do tema no contexto do debate público. Já houve outro vídeo há algum tempo, que tinha aquelas imagens das hienas... Nós estamos vivendo uma nova era, da tecnologia. A mim me impressiona a qualidade desses vídeos. Eu fico me perguntando: quem está financiando isso para atacar as instituições? Isso precisa ser observado, sem querer estabelecer qualquer censura.
Mas,às vezes, a informação é repassada por lideranças do governo.
É inaceitável esse ambiente de agressão, unilateral ou recíproca. O Michel (Temer), que é professor constucionalista, chamava a atenção: quando a Constituição diz que os poderes são independentes e harmônicos, vamos frisar não só a independência, mas também a harmonia. A ideia de diálogo institucional. O sistema permite esse check and balance.
Sobre o inquérito que apura os ataques virtuais ao STF. Está na direção correta?
Já deu respostas importantes, inclusive de organizações dedicadas a ataques. Aí as pessoas diziam: “Ah, só estava fazendo uso da minha liberdade de expressão”, de uma forma esquisita. No fundo, tínhamos exagerado muito. O ambiente de protesto, naquela fase final do governo PT, soltou os bichos todos. As pessoas perderam a noção dos limites, de que o meu direito termina quando começa o seu. O ambiente das redes sociais é muito agressivo. As pessoas se imaginam que estão nuas no quarto, que podem fazer qualquer coisa, que podem falar que vão matar. E não podem. É uma questão que tem de repetir sempre, até cansar: poder envolve responsabilidade.
A ex-presidente do Chile Michelle Bachelet, do Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU, fez duras críticas ao Brasil. Ela fala de retrocessos na área ambiental e outras. O senhor vê retrocessos no Brasil?
Não gostaria de usar esse tipo de expressão, nem travar debate com dignitário ou exercente de funções importantes no exterior. Nós estamos trilhando nosso próprio caminho e fazendo nossas próprias escolhas. A questão do meio ambiente pode ser colocada de várias maneiras, e até de maneira talvez inadequada. A crítica que muito se ouvia era da sobreposição de órgãos tratando do tema – que decorre da Constituição. Em princípio temos três autoridades – a União, o estado e o município – tratando do mesmo tema. O que gera um excesso de proteção ou uma grande confusão. Então há muita reclamação. Mas daí a dizer que não precisamos de autoridade de meio ambiente vai uma distância muito grande. Há algum ruído, que merece uma sintonia fina. Mas não vi até agora nenhuma modificação no Código Florestal – Ah, eu posso desmatar mais! Não houve nenhuma iniciativa por parte do governo nem do Congresso nesse sentido. A mim me pareceu – eu falei com amigos estrangeiros em relação a isso – que talvez seja uma má comunicação do governo. O que também não foi bom para o Brasil. Aí vieram as queimadas, a questão da Amazônia...
Mas estão falando também em abrir terras indígenas.
Veja. Estou falando da lei do jeito que estava. Até agora não vi nenhuma flexibilização em relação a isso. Mas isso fez bem para o Brasil? Claro que não. Vimos em Davos.Todo mundo que falou dessa questão de investimento coloca como condicionante o respeito ao meio ambiente. E a gente viu essa preocupação no discurso do ministro Paulo Guedes: não estamos alterando nenhum princípio básico. E isso também está no texto constitucional. E se viesse uma lei fazendo flexibilização indevida, certamente o MP entraria com ação imediata no STF. A mim me parece que essa questão é muito delicada, inclusive para a nossa atividade econômica. Um terço do nosso PIB vem do agronegócio. A agricultura está convivendo com esses marcos regulamentares do meio ambiente. E é uma agricultura exitosa. Por que dizer agora que precisamos flexibilizar? Não. Vamos ter controles racionais. Essa reclamação é devida. Vamos dar racionalidade ao sistema, definir quem de fato legisla sobre determinado tema. Isso é uma crítica aceitável. Agora há a hipérbole, que muitas vezes vem nesse contexto da radicalização política, e isso a gente precisa de fato criticar. Isso tenha sido talvez o maior dano à imagem do Brasil, porque veio consorciado com a questão das queimadas. Depois vimos que não era uma invenção nossa, vimos como ocorreu na Austrália, e não tinha a ver propriamente com descuido, mas sim com questões climáticas. Mas daí a festejarmos queimadas ou deixarmos de fazer proteção vai uma distância grande.
E sobre os direitos humanos?
Vejo com preocupação essa crise que se enceta no Ceará. A politização das polícias é um problema, e temos que olhar para isso. O Supremo já se manifestou mais de uma vez sobre a proibição das greves. Como também não se pode aceitar qualquer politização das Forças Armadas. Isso deve ficar bem claro. As Forças Armadas são instituições do Estado, não podem estar a serviço de partido político. Isso é um marco, creio que da Constituição de 1967, do governo Castello Branco.
As Forças Armadas estão sendo usadas politicamente?
Não estou dizendo isso. Estou dizendo que não podem. Como também não pode permitir o uso da polícias. São dois males que podem assolar a polícia. Um é a politização. O outro é o miliciamento. Isso precisar ser olhado com muita seriedade e claramente combatido, porque passa a ser uma ameaça ao Estado de Direito. Voltando à questão: não vi nenhum enfoque no sentido de violação dos direitos humanos. Mas, em relação à polícia, veja por exemplo o excludente de ilicitude: foi defendido, e o Congresso repudiou claramente. Me parece que por aí poderíamos ter algo. Nós já temos uma ação policial muito letal, vis-à-vis ao que existe mundo afora. É claro que nós temos uma violência muito singular, não podemos edulcorar o cenário. A polícia sofre muito, morrem muitos policiais. Precisamos reconhecer isso. Há situações muito circunstanciadas que precisamos avaliar. Mas, de fato, imaginar que se deve dar licença para a polícia matar, obviamente que seria um ataque aos direitos humanos. Mas isso não se deu.
As Forças Armadas e as polícias não podem ser usadas politicamente. Mas está aumentando muito o número de policiais eleitos. E praticamente todos os ministros do Planalto são generais. Como o senhor vê isso?
Em relação a determinadas funções — promotores, juízes, policiais militares e civis —, talvez tenha que se discutir algum critério mais alongado de inegibilidade. Acho que é uma questão inevitável. Talvez a mesma coisa tenha que ocorrer em relação a policiais. Tem-se que pensar em regras, o que é natural. São modelos defensivos. Inicialmente se coloca algum tipo de abuso, e aí se detecta.
É muito grave ver um policial usando o cargo sendo candidato.
Com certeza. Compromete a liderança que eles passam a exercer em relação a segmentos da tropa, com a possibilidade, por exemplo, de detonar greve. Ou o uso da polícia por alguma liderança contra outra. Você pode estar criando um modelo de estado policial. Isso precisa ser discutido. Por isso que esses epifenômenos que estão se manifestando são positivos, não no sentido de sua existência em si, mas no sentido de gerarmos anticorpos.
O STF pode fazer isso?
O tribunal tem feito – há um precedente do ministro Alexandre reiterando a questão da greve de forças policiais. Na verdade, greve de força armada já por conotação é motim. Já é por si só algo impróprio. A greve é um instrumento importante de quem não tem arma. É o sujeito que está dizendo “eu me nego a trabalhar”, que não tem outra forma de pressão. Quem tem arma está proibido naturalmente, mas é a Constituição que proíbe, de fazer greve.
O senhor mudou a sua rotina depois que chegaram ameaças ao Supremo?
Não, não. É claro que a gente olha ao menos para onde vai (risos). Mas eu e Guiomar moramos no mesmo lugar. Claro, temos as pessoas que zelam um pouco pela segurança, mas continuo a andar de bicicleta, passear de jet ski, fazer cooper.
O senhor espera um ministro terrivelmente evangélico como mais um colega seu?
É uma questão muito delicada, e claro, se coloca sempre em um contexto político. Por isso essa expressão, terrivelmente evangélico. O importante é que seja um terrível constitucionalista. Que saiba ler o texto constitucional. Se for religioso, que seja respeitoso em relação às demais religiões. A ideia do pluralismo religioso é importante no texto constitucional. Felizmente aqui no tribunal temos algumas querelas, mas nenhuma nesse contexto (risos). Ninguém pediu para tirar o Cristo do plenário ou trazer outras imagens.
Houve avanços na relação entre o Executivo e o Judiciário?
Um avanço institucional foi a coragem cívica que o governo teve de escolher o procurador -geral fora da lista. É o que a Constituição preconiza. A lista é um invento corporativo e produziu o que vocês sabem: ex-presidente de associação se tornando procurador-geral da República – sem fazer nenhum juízo sobre a boa ou má qualificação dele. É natural: quem domina a máquina associativa é que vai ser eleito. O presidente retornou à interpretação literal, originalista do texto constitucional: escolher entre os procuradores. É um posicionamento em relação às corporações. Isto é positivo, é uma mensagem republicana.