Futebol, religião e política não se discutem. No entanto, há quem diga por aí que os polêmicos temas têm espaço e merecem o debate. No carnaval, a política, por exemplo, é pauta de marchinhas há muito tempo. Mas a vida nacional tem pautado os desfiles da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, e até mesmo dividido e polarizado a festa. De acordo com especialistas e compositores, a multiplicação de sambas críticos reflete o país.
A inspiração para as letras muitas vezes vem da tensão social. Para o compositor Luiz Carlos Máximo, 58 anos, da Mangueira, o carnaval, visto como um espaço de desabafo, não poderia refletir outra coisa. “Estamos vivendo em uma sociedade muito polarizada, com uma situação econômica complicada e o samba é uma música popular. Logo, essa tensão que a sociedade vive vai se refletir de alguma forma”, avalia.
O compositor do samba-enredo da atual campeã do Grupo Especial do Rio de Janeiro acredita que, no passado, se viam menos críticas nos sambas porque não havia a tensão social que existe hoje no Brasil. “Isso não mudou do nada. É fruto da tensão social que estamos vivendo”, reforçou. Para Luiz Carlos, o samba deste ano, que vai contar a história de Jesus Cristo, como um Jesus “da gente”, está ligado de alguma forma com o do ano passado.
A música que levou a escola a conquistar o título de campeã de 2019 contava a história do Brasil pela ótica dos heróis populares. No desfile, negros e índios foram reconhecidos como representantes da história do país. A vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, foi uma das personalidades homenageadas.
Este ano, a polêmica vem de um trecho que muitos consideram como crítica direta ao presidente Jair Bolsonaro. Para Luiz, o trecho “Favela, pega a visão/Não tem futuro sem partilha/Nem Messias de arma na mão” (quadro ao lado) é muito mais do que uma coisa objetiva.
Membro do núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), Nelson Inocêncio concorda com o compositor e acredita que o momento é propício para dar visibilidade às pessoas das comunidades. “Depois do carnaval o que sobra para essas pessoas, infelizmente, são as páginas policiais”, reflete.
Nelson reforça a influência dos tempos atuais como inspiração na hora de compor as letras. “Tem tudo a ver com a conjuntura. As pessoas estão externando questões problemáticas”, avalia.
O professor do Departamento de Artes Visuais da UnB acredita que o grito que vem da avenida é um chamado à reflexão. “Estamos muito além dessa ideia de samba de ‘crioulo doido’. São crioulos lúcidos. Se a arte serve somente ao entretenimento, empobrece”, completa.
Temas diferenciados
A religião será apenas um dos temas expostos pelas escolas de samba na avenida em 2020. Assim como a Mangueira, a Acadêmicos do Grande Rio trata de religião, conta a história do pai de santo Joãozinho da Gomeia e traz um debate sobre a intolerância religiosa. Em um dos trechos, a Grande Rio clama: “Eu respeito seu amém, você respeita meu axé”. Já o enredo da Portela, quarta colocada em 2019, levará para a avenida os índios que habitavam o Rio antes dos colonizadores. As críticas vêm em tempos de desmatamento e um forte debate sobre as terras indígenas, que, segundo o presidente Bolsonaro, têm tamanho “abusivo”.
Mesmo nos sambas criados para homenagearem determinado lugar ou pessoa, é possível encontrar críticas sociais. O enredo da Unidos da Tijuca, criado para destacar as belezas, arquitetura e urbanismo do Rio de Janeiro, também cobra mais atenção com o povo carioca. “Dignidade não é luxo, nem favor”, diz o samba composto por Dudu Nobre, Totonho, André Diniz, Fadico e Jorge Aragão.
Para Dudu, o carnaval sempre abordou assuntos do dia a dia e a política, que faz parte do cotidiano, também. “O último samba-enredo da Mangueira tinha um pouco disso e acabou consagrando a escola como campeã. A tendência é ver outros carnavalescos indo por esse caminho”, analisa, em conversa com o Correio.
O cantor e compositor citou o momento vivido no Rio e o prefeito Marcelo Crivella como um dos pontos de destaque no samba-enredo da Unidos da Tijuca. “É um prefeito que nunca pisou na Marquês de Sapucaí”, reclama. Apesar de apoiar as críticas, Dudu acredita que é preciso cuidado para abordar certas temáticas. “Temos a liberdade de expressão, mas é preciso saber até onde se vai para não faltar o respeito com crenças e pensamentos políticos”, completa.
Dedo na ferida
Mangueira
“Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque de novo cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem Messias de arma na mão”
Portela
“Índio pede paz, mas é de guerra
Nossa aldeia é sem partido ou facção
Não tem ‘bispo’, nem se curva a ‘capitão’
Quando a vida nos ensina
Não devemos mais errar
Com a ira de Monã
Aprendi a respeitar a natureza, o bem viver”
Unidos da Tijuca
“Lágrima desce o morro
Serra que corta a mata
Mata, a pureza no olhar
O Rio pede socorro
É terra que o homem maltrata
E meu clamor abraça o Redentor
Pra construir um amanhã melhor”
São Clemente
“Abre a janela, aperta o coração
O filtro é fantasia da beleza
Na virtual roleta da desilusão
Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu!
E o país inteiro assim sambou
Caiu na fake news!”
Grande Rio
“Salve o candomblé, Eparrei Oyá
Grande Rio é Tata Londirá
Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé
Eu respeito seu amém
Você respeita meu axé”