Integrante de uma turma criminal do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Rogério Schietti vê com bons olhos a adoção da figura do juiz das garantias. Ele considera a medida importante para esclarecer o papel de cada personagem no processo penal. O ministro reconhece que o Judiciário tem uma estrutura enorme e tem processos longos, mas ressalta iniciativas para desburocratizar as práticas nos tribunais. O magistrado é o entrevistado do CB Poder desta segunda-feira (20/1). Leia os principais trechos da entrevista.
O que há de novo na figura do juiz de garantias?
O juiz de garantias é uma figura que já existe em vários países. É um avanço, agora precisaremos saber como colocar em prática essa figura, porque o Brasil é um país continental. Todos os países que já fizeram uma reforma na sua legislação processual penal criaram algo similar ao que nós chamamos juiz das garantias. É um juiz que vai cuidar do controle de legalidade da fase de investigação criminal – portanto antes do processo – e também um juiz que eventualmente vai decretar uma prisão preventiva, uma busca e apreensão, determinar uma interceptação telefônica, aquelas providências que a Constituição determina que só um juiz pode fazer. A partir do recebimento da denúncia, quando começa o processo, um segundo juiz passa a atuar. Aquele juiz das garantias fica de lado, e passa a atuar no processo o juiz que vai instruir, recolher a prova e julgar o acusado.
Tem gente para tudo isso?
Essa é a questão. Temos hoje cerca 18 mil juízes no Brasil. É um número insuficiente. Há mais de 4 mil cargos vagos. Seria importante que tivéssemos um número maior de juízes, porque cerca 20% dos municípios não têm um juiz titular, então isso exige um deslocamento de juízes entre várias comarcas, para que possam dar conta de tantas atribuições, não só criminais, como também de família, de questões urbanísticas, ambientais, etc. O Conselho Nacional de Justiça tem um grupo instituído por seu presidente, ministro Dias Toffoli, que está analisando como vai ser a divisão das competências: a competência de supervisionar as investigações, e a competência de julgar o processo. Em razão disso, a vigência da lei, nesse aspecto, foi adiada por 180 dias.
Mas no sistema jurídico brasileiro, o Ministério Público pode pedir medidas que são feitas normalmente na fase do inquérito, como a prisão de um réu. O juiz de instrução pode deferir ou indeferir o pedido. Não é contraditório?
De um certo modo, sim. A ideia é de que um juiz que vai julgar não tenha tido contato com as provas recolhidas durante a investigação. Principalmente quando ele tem que determinar uma medida mais drástica, como uma prisão preventiva. Por quê? Porque quando o juiz vai decretar uma prisão provisória, ele tem que analisar as provas e justificar a decisão. Então quando ele toma uma decisão prendendo alguém durante o processo, talvez ele já esteja psicologicamente tendente a condenar. A justificativa do juiz das garantias, com essa separação de funções, é preservar o juiz que vai julgar dessa afetação psicológica que talvez ele desenvolva. Normalmente essas medidas que nós chamamos cautelares são decretadas durante a investigação. Mas nada impede que isso ocorra também durante o processo. Então, nessa hipótese, a pergunta faz todo o sentido. É possível que um juiz que decrete uma prisão durante o processo, que vai ser o mesmo a julgar, de alguma maneira continue a ser afetado, como sempre aconteceu. Os juízes hoje supervisionam o inquérito, colhem a prova em juízo e depois julgam.
O juiz das garantias já existe em outros países, mas aqui no Brasil surgiu em meio à discussão da Vaza-Jato.
O juiz das garantias faz parte de um projeto de lei de reforma do código de processo penal que tramita desde 2009 no Congresso. Foi aprovado no Senado e hoje tramita na Câmara. Ele foi inserido na undécima hora dentro do projeto assim chamado da lei anticrime, que é um projeto oriundo do poder executivo, do ministro da Justiça (Sérgio Moro). Lá no final da tramitação, importaram esses outros dispositivos do projeto de código de processo penal para dentro da lei anticrime. Foi uma surpresa para todo mundo, porque não se esperava que um projeto que tinha uma característica de ser mais duro – com proposta de endurecer a legislação penal, aumentar as penas, dificultar a progressão de regime, eliminar benefícios da execução penal – viesse com dispositivos garantistas.
Muitos especialistas afirmam que esses dispositivos vão dificultar a elucidação de crimes como lavagem de dinheiro, peculato.
Não acho que vá dificultar. Estamos apenas dizendo que quem vai julgar não é mesmo que vai deferir essas medidas. Não creio que vá alterar substancialmente os processos. O que talvez possa acontecer é que em algumas localidades onde não exista número suficiente de juízes ou até nem exista juiz, possa causar algum atraso. Mas nos grandes centros urbanos, muitos já tem uma figura parecida. Já funciona assim.
Desconsiderando o problema da falta de juízes, a medida então seria um avanço.
A medida representa um avanço na legislação. A questão é como implementar a novidade.
Outra novidade é chamada cadeia de custódia das provas: são as regras de como devem ser tratadas as provas, desde a fase da busca e apreensão até a conclusão do inquérito. Isso vai criar muito debate ainda no processo penal?
Esse é um ponto sobre o qual pouco se tem comentado e é muito importante. De fato, não temos uma preocupação como existe em outros países com a preservação da prova. Percebemos isso na cena do crime. Acontece um crime, as pessoas passam por ali. Nâo há um isolamento da prova, do corpo, etc. Muitas vezes, depois de recolhidos os vestígios do crime, eles não são preservados na sua integridade. A reforma também se preocupou com isso e incluiu vários dispositivos preservando essa prova. O problema é que, ao fazê-lo, trouxe uma série de minudências, que caberiam mais em um regulação admnistrativa. Trouxe para o Código de Processo Penal muitos detalhes que talvez possam geral nulidades processuais. Isso terá de ser decidido pelos tribunais na aplicação desses dispositivos.
Isso vai tumultuar os tribunais.
Já estou esperando uma quantidade imensa de habeas corpus, tão logo se verifique o descumprimento de uma dessas medidas que passam a ser de maior exigência.
O que o senhor acha da lei de abuso de autoridade, na forma como foi sancionada no final do ano passado?
Infelizmente no Brasil muitas leis são feitas por encomenda ou a partir de determinados episódios. E são feitas muitas vezes de maneira açodada, sem o tempo necessário para a discussão entre os parlamentares e com a sociedade civil. Com essa lei foi mais ou menos isso. A lei em si não traz muitas dificuldades porque discrimina o que já existia antes com a lei de abuso de autoridade anterior. E ao contrário do que estão dizendo, ela não vai impedir que um juiz decrete uma prisão, ou que solte um acusado, não vai impedir que a polícia algeme um preso quando necessário, que o Ministério Público ofereça uma acusação quando necessário. A lei deixa claro que só configurará o crime de abuso de autoridade ou de poder quando o ato for com o intuito de favorecer alguém ou prejuficar outrem com o propósito de violar a lei. E isso é algo que dificilmente ocorrerá.
Em relação à nuvem que instalou sobre a Lava-Jato em razão das conversas entre integrantes da força-tarefa e o hoje ministro da Justiça, existe algo que desperte alguma suspeita de que houve contaminação no processo?
Acho um pouco complicado falar sobre isso porque o que nós temos são vazamentos de áudios entre integrantes da força-tarefa do Ministério Público e também talvez eu venha eventualmente a analisar alguma dessas questões quando submetidas ao Judiciário. O que posso dizer de uma maneira clara é que isso ocorreu – se de fato ocorreu – porque no Brasil não temos uma clara divisão entre as funções de acusar e julgar, muitas vezes há uma certa sobreposição. Isso não é defeito do promotor ou do juiz. Isso é pela própria estrutura do processo penal, que essa lei do juiz das garantias tenta aprimorar. Pela reforma, o juiz não pode fazer as vezes de acusador. A lei atual, antes da reforma, acaba permitindo que o juiz tenha um protagonismo maior do que deveria ter. O juiz foi feito para recolher a prova e julgar. Ele não pode atuar como um segundo acusador. Essa função é do Ministério Público. Então é uma deficiência estrutural, que nos criou uma certa confusão. O novo Código de Processo Penal, que está sendo objeto de análise no Congresso, vai nessa direção, de melhorar essa clareza das diversas funções que cada personagem ocupa no processo penal.
No seu papel de ministro que atua em uma turma criminal, também houve conversas com integrantes do Ministério Público e advogados? É normal no dia-a-dia?
Veja bem, nós recebemos nos nossos gabinetes tanto advogados como promotores. Eles podem pedir audiência, assim como um juiz. Eles apresentam argumentos, que na verdade só poderão ser considerados se estiverem nos autos. Eles terão oportunidade de apresentar esses argumentos no dia do julgamento. É claro que nós temos relações normais com pessoas. Tenho amigos advogados, amigos promotores, e isso não me contamina. Não sou um ser isolado em um castelo.
Até porque não existe essa figura do juiz que não tenha uma opinião, uma visão, princípios.
Exato. Somos pessoas que temos nossas formações, nossos preconceitos, nossos traumas. Somos seres humanos que podemos falhar. Mas é claro que devemos nos preservar para evitar que essas amizades interfiram na nossa imparcialidade. Porque quando um juiz perde a imparcialidade, ele deixa de ser juiz e passa a ser advogado ou acusador. Não pode acontecer.
O que o senhor tem a falar às pessoas que dizem o Judiciário brasileiro é caro e ineficiente?
O Judiciário brasileiro tem seus problemas. Um deles talvez é o custo, que é enorme. Manter uma estrutura enorme – Justiça trabalhista, Justiça militar, Justiça criminal, Justiça federal – implica a necessidade de quase 20 mil juízes. E os procedimentos nem sempre são ágeis. Os processos no Brasil demoram muito, isso é fato. Mas existem iniciativas positivas. O CNJ e os tribunais buscam aperfeiçoar as práticas judiciárias.