“Goebbels foi um dos mais cruéis ministros da propaganda. Isso é nojento. É positivo que Alvim tenha sido demitido.” Quem sentencia é Gábor Hirsch, 89 anos, sobrevivente de Auschwitz, ao saber do vídeo do então secretário de Cultura Roberto Alvim parafraseando um discurso do ministro nazifascista. Há 75 anos, no fim da 2ª Guerra Mundial, Hirsch escolheu permanecer no campo de concentração, pois não tinha mais força para longas caminhadas. Os Aliados estavam a caminho, e deixar o local com os soldados nazistas significaria a morte. O ex-prisioneiro representa, em sua fala, o sentimento de milhares de judeus, muitos deles filhos, netos ou bisnetos das vítimas da máquina de genocídio nazista.
Hirsch mora em Zurique, na Suíça, e falou exclusivamente ao Correio. Na manhã de ontem, a presidente da Associação Cultural Israelita de Brasília, Tamara Socolik divulgou uma nota. No texto, ela afirma que a comunidade judaica do Distrito Federal foi surpreendida com a notícia do pronunciamento de Alvim “apresentando a nova política governamental para a pasta da Cultura para o Brasil, inspirado nos valores da política nazista e fazendo uso de ferramentas de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista de Hitler”. “Diante de tamanha afronta, não apenas à comunidade judaica, mas à diversidade cultural que caracteriza o nosso país, a Associação Cultural Israelita de Brasília (Acib) se soma à condenação expressada pela Confederação Nacional Israelita do Brasil (Conib) e apoia a exoneração do secretário de seu cargo”, escreveu Socolik.
A Conib, por sua vez, tachou de inaceitável “o uso de discurso nazista pelo secretário da Cultura do governo Bolsonaro”. O texto destacou que a apresentação de Alvim “é um sinal assustador da sua visão de cultura, que deve ser combatida e contida”. “Goebbels foi um dos principais líderes do regime nazista, que empregou a propaganda e a cultura para deturpar corações e mentes dos alemães e dos aliados nazistas a ponto de cometerem o Holocausto, o extermínio de 6 milhões de judeus na Europa, entre tantas outras vítimas. O Brasil, que enviou bravos soldados para combater o nazismo em solo europeu, não merece isso”, afirmou a nota.
A Embaixada da Alemanha no Brasil também repudiou o vídeo institucional da Secretaria Especial da Cultura. De acordo com a representação, “o período do nacional-socialismo é o capítulo mais sombrio da história alemã, trouxe sofrimento infinito à humanidade”. “A Alemanha mantém sua responsabilidade. Opomo-nos a qualquer tentativa de banalizar ou mesmo de glorificar a era do nacional socialismo”, divulgou a representação diplomática nas redes sociais. E a Embaixada de Israel afirmou que “a comunidade judaica e o Estado de Israel estão unidos no combate a todas as formas de antissemitismo”. “Por esta razão, a Embaixada de Israel apoia a decisão do governo brasileiro de exonerar o secretário especial de Cultura, Roberto Alvim. O nazismo e qualquer uma de suas ideologias, personagens e ações não devem ser utilizados como exemplo em uma sociedade democrática sob nenhuma circunstância”, acrescentou o texto.
O vídeo institucional em que o então secretário de Cultura, no exercício da função, parafraseia Gobbels também foi notícia em jornais internacionais. O jornal francês Le Figaro, por exemplo, repercutiu o assunto, bem como a agência portuguesa Lusa. O jornal americano The New York Times afirmou que Alvim foi demitido por “evocar propaganda nazista”", e que o ex-secretário acabou criticado por autoridades brasileiras e, até mesmo, pelo astrólogo e guru de bolsonaro, Olavo de Carvalho.
Os textos mais contundentes vieram da revista alemã Der Spiegel e do jornal espanhol El Pais. O primeiro veículo chamou o presidente da República de populista de direita e definiu o posicionamento de Alvim no vídeo como assustador. Já o jornal europeu deu ênfase à nota de Bolsonaro a respeito da demissão do ex-secretário, na qual o presidente fala em “pronunciamento infeliz”.
Palavra de especialista
Uma cultura antibrasileira
O professor de história Deusdedith Alves alerta que, desde 2019, o país se depara com uma sequência de posicionamentos do Executivo federal que remetem a ideias totalitárias. No entanto, para o estudioso, até a data de ontem, nenhum episódio de autoritarismo do governo Bolsonaro havia sido tão explícito quanto o vídeo de Alvim. “A diferença entre abuso e ameaça é o simples fato de ser explícito demais. Não foi a primeira vez que o governo elaborou um discurso que ameaça a democracia; mas foi a primeira vez que repetiu um discurso nazista. Essa perspectiva nunca tinha se revelado com tanta clareza”, analisa.
O estudioso alerta que o vídeo institucional representa um desejo do governo federal de implementar uma “cultura perfeita” no Brasil, algo semelhante ao que tentou fazer a Alemanha Nazista de Hitler. “As falas do Alvim refletem exatamente aquilo que o nazismo pretendeu na área cultural, no âmbito arquitetônico, da música, da pintura e da literatura. Eles queriam uma arte que representasse o ideal de pureza. Mas o que seria a nossa pureza? Não temos uma ideia muito clara, a não ser a idealização da cultura ocidental absolutamente branca e a negação da diversidade cultural que existe hoje no Brasil”, diz Alves.
Três perguntas para
Mourad Belaciano, diretor do Grupo de Estudos do Oriente Médio da Associação Cultural Israelita de Brasília (ACIB)
Como o discurso do secretário de Cultura repercutiu entre a comunidade judaica?
As pessoas estão indignadas e consideram inadmissível que um agente público de tão alto nível, ocupando cargos federais, se manifeste plagiando um ministro de Hitler. Joseph Goebbels atuou durante todo o período nazista. Ele era um dos homens de confiança de Hitler, da linha de frente da ideologia. Se o estado alemão se nazificou, foi por força de três grandes esteios: a força política do Estado, com normas e leis; a policial, com Gestapo e a SS; e a propaganda e as ideias. E ele (Goebbels) é um dos esteios desse projeto. Foi um dos maiores desastres que a humanidade já conheceu. É indignante ver homens públicos, em pleno século XXI, repetindo e vangloriando a era nazista que aconteceu há mais de 80 anos. É preciso expor, chamar a atenção da população. Essa história não pode ser repetir. E não pode ser repetir com brasileiros. A ideologia que ele defendia e ele usou a arte, claramente segrega e classifica os indivíduos conforme características sociais, culturais. É uma ideologia nefasta. A comunidade judaica vai fazer de tudo para que essa ideologia não prospere no país.
Qual a gravidade de um posicionamento como esse, tão calculado, dentro do governofederal? Na quinta-feira, o presidente qualificou Alvim de o melhor secretário de Cultura da história do Brasil.
Essa afirmação é grave e contraditória. Após a repercussão dos fatos, o próprio presidente declarou o desligamento do secretário em função do posicionamento infeliz. O ato de hoje é muito mais concreto. É um fato. É um desligamento. E ele repudia as formas de totalitarismo, se colocando como amigo da comunidade judaíca.
Nomes importantes do governo já flertaram com o autoritarismo, citando, por exemplo, o AI-5. É possível dizer que esse conjunto de declarações revela traços de um governo com viés de extrema direita?
Eu torço para que não seja isso. Se for, alguma nuvem pode estar se formando. Essas declarações negam a caminhada da história. Uma união de forças nos anos 80 resultou em um novo Estado Democrático de Direito. E essa história não tem que ser apagada. Se existem forças que querem fazer retroagir a história, vão se deparar com a própria história. Ainda que a política esteja muito maltratada pelos próprios políticos, existem forças democráticas que têm feito manifestações importantes. Em poucas horas, o secretário de Cultura estava demitido. Seja a imprensa de um modo geral, seja a pequena comunidade judaica, seja Rodrigo Maia na Câmara, foram reações imediatas. Isso é uma garantia que a nossa democracia, que passa por problemas, resiste a aventureirismos que deponham contra a própria democracia.
Artigo
por Marcelo Vitorino
Caiu um “ministro”, mas e a ideologia por trás dele?
É preciso olhar com mais cuidado para o futuro. A doutrinação não acontece repentinamente, ela vem aos poucos. Assim como o sapo na panela, que não percebe o aumentar da temperatura e só se dá conta quando não há mais forças para fugir, o cidadão de bem, cheio de boas intenções, valores familiares e propósitos, também vacila.
Se ainda não conhece, vale assistir dois filmes: A onda — (Die Welle, 2008) e Ele está de volta — (Er ist wieder da, 2015). O último está no Netflix.
É uma ilusão achar que regimes totalitários, orientados à esquerda ou à direita, não tenham espaço no mundo contemporâneo. Os meios para a morte da democracia passam por um condicional importante: o apoio popular.
Mas, em um país democrático, como alguém pode apoiar um governo totalitário? Bem… Não é tão difícil assim quando se entende os processos de manipulação. Primeiro é preciso estabelecer um culpado para todos os problemas financeiros da sociedade. Na Alemanha nazista, os escolhidos foram os judeus, por exemplo. A dicotomia e a ideia de luta de classes precisa ser forte para ser facilmente assimilada pelo cidadão médio.
Depois, é preciso restringir vozes contrárias e isso se dá por vários meios, como a revisão de livros didáticos, o cerceamento a manifestações culturais subversivas, o abandono de instrumentos e instalações que levem alguém a refletir.
Em paralelo, é preciso implodir a reputação de outros poderes, no nosso caso, o legislativo e o judiciário precisam parecer o mais corrupto e nocivo possível.
Não podemos esquecer a imprensa, o chamado quarto poder. Ela precisa ser descredenciada continuamente, de preferência por pessoas que trabalharam nela.
Para concluir, a mudança não pode ser fruto de pensamento individual, precisa ter caráter nacionalista, patriótico, com sonhos de grandeza e retomada de poder aquisitivo e valores morais.
Tudo isso lentamente… Sem pressa, senão o sapo pula da panela.
Há poucos dias, Bolso [presidente Jair Bolsonaro] elogiou o nazi secretário com muitas frases elogiosas. Alvim sempre foi o que vimos, ele sempre se mostrou. Ele tá saindo porque pegou mal demais, não por ser criminoso o pronunciamento. E é"
Zélia Duncan cantora
"Bom, Alvim caiu. Tinha que cair, mas não adianta comemorar. Só caiu pq foi flagrado. Deu muito na cara. Esse governo pensa exatamente como ele. Todo mundo já sacou. Entrará outro no lugar com o mesmo pensamento de aniquilar as diferenças. Esse é o projeto de cultura desse governo"
Alexandro Nero, ator
"Está na hora da classe artística, teatral, editorial, cinematográfica, que está calada, porque precisa do dinheiro de incentivos, fundos, Ancine e programas estatais, deixar de se acovardar e pegar o trombone. Já derrubamos muitas ditaduras. Mas nas ruas!"
Marcelo Rubens Paiva, escritor
“O secretário ultrapassou todas as fronteiras. Os milhões de cadáveres do nazismo cobram que sua exoneração seja imediata, como repúdio a um regime que causou profunda infelicidade à humanidade e, em especial ao povo judeu”
Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil.
Sou brasileiro de família judia. Seis milhões de judeus morreram por causa do nazismo. Usar a cultura para fazer revisionismo histórico é perverso e violento. O vídeo do secretário Roberto Alvim é criminoso. Revela uma conduta autoritária inaceitável"
Luciano Huck,
apresentador e pré-candidato a presidência em 2022.
Eles nem se escondem mais, citando Joseph Goebbels (ministro da propaganda na Alemanha nazista)”
Marcelo D2, cantor e compositor
“Ao valer-se da estética nazista para dar seu recado nitidamente totalitário, com o selo oficial do governo federal, o sr. Roberto Alvim cruzou todos os limites da civilidade e do respeito ao Estado de direito, às instituições democráticas e ao povo"
Movimento de renovação política Agora!
“O pronunciamento oficial de um secretário de Estado, reproduzindo, em forma e conteúdo, a política de propaganda de um regime totalitário, mundialmente repudiado pelos prejuízos causados à humanidade, é inaceitável”
Associação Juízes para a Democracia
”Cá entre nós, pra mim essa polêmica toda criada pelo nazistAlvim não passa de mais uma jogada do (des)governo Bozo pra desviar a atenção do que eles consideram o maior perigo, que é o escândalo (mais um) de corrupção na Secom”
Mário Lago Filho, escritor