Politica

Em vigor, lei que inibe abuso de autoridade

Começa a valer hoje a legislação prevendo a prisão de juízes, policiais e integrantes do Ministério Público que cometerem excesso nas funções durante investigações ou no curso de ações penais. Críticos do texto veem retrocesso na luta contra a criminalidade

Promulgada em setembro do ano passado, após ser foco de tensão entre o Poder Executivo e o Congresso, a Lei 13.869, do abuso de autoridade, entrou em vigor hoje e provoca mudanças importantes no curso de processos penais e investigações pelo país. A medida gera impacto imediato na conduta de juízes, do Ministério Público e da polícia. Os principais pontos da nova lei se baseiam em experiências que resultaram de ações da Operação Lava-Jato e, embora não devam afetar os processos que já foram julgados, têm potencial para mudar decisões judiciais tomadas a partir de agora. Em seus principais trechos, a legislação prevê punição para magistrados que decretarem prisões sem fundamento legal e impede o bloqueio de bens e valores “exorbitantemente” acima do que o criminoso pode ter desviado.

Somada ao pacote anticrime, que provoca outras alterações no processo penal e começa a valer no fim deste mês, a lei do abuso de autoridade faz parte de uma série de mudanças na legislação penal aprovadas pelo Legislativo. O artigo 9º, por exemplo, determina a prisão de um a quatro anos para o juiz que “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. A mesma pena está prevista para o magistrado que deixar de “deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível”.

Grande parte dos artigos preveem garantias que já existiam no ordenamento jurídico brasileiro, mas não eram plenamente respeitadas. Esse é o caso de prerrogativas de advogados. De acordo com a nova legislação, será considerado abuso de autoridade o ato que impede o preso, o réu solto ou o investigado de conversar de forma reservada com seu defensor. A punição também será aplicada se o agente público impedir o réu de se sentar ao lado do advogado durante a audiência, com exceção para depoimentos prestados por meio de videoconferência. Um dos artigos foi incluído por conta da forte influência do caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A lei pune quem “decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”.

Lula, que foi conduzido pela Polícia Federal para depor no âmbito da Lava-Jato, reclamou ter sido vítima de abuso e perseguição política. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é ilegal a condução coercitiva especificamente para que o depoimento do investigado seja colhido. Mesmo assim, os parlamentares decidiram incluir esse dispositivo no texto.

O professor Conrado Gontijo, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a mudança na legislação não trará prejuízos a investigações e ao trabalho de juízes, policiais e procuradores que atuam dentro da lei. “Essa lei, efetivamente, não pune o agente do Judiciário, do Ministério Público ou policial que atue de forma legítima em suas profissões. A lei, na verdade, discrimina condutas que são inaceitáveis”, diz.

Protestos
Enquanto tem o apoio de instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil, a lei causa protestos de juízes, integrantes do MP e entidades de classe, como a Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), que entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para anular partes do texto. Na opinião do deputado Capitão Augusto (PR-SP) — presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e coordenador da Frente Parlamentar Mista da Segurança Pública, também conhecida como bancada da bala —, a lei de abuso de autoridade é um retrocesso no combate à criminalidade e à corrupção. “Lamentavelmente, o Congresso deu um péssimo recado à sociedade. E o pior é que a aprovação dessa lei foi uma retaliação do parlamento às investigações da Lava-Jato. É uma posição que vai em sentido totalmente contrário a todo o esforço que fizemos contra a corrupção”, reprova. “A partir de agora, policiais, promotores e juízes ficarão inibidos, temerosos em desempenhar suas funções, porque as punições da nova lei são muito rigorosas. Em suma, trata-se de um grande retrocesso.”

O projeto que originou a nova lei de abuso de autoridade fez parte do 2º Pacto Republicano, de 2009, proposto pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo, que ocupava a presidência da Corte, e pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2017, a matéria passou a ser relatada por Roberto Requião (MDB), à época senador pelo estado do Paraná.

Em entrevista ao Correio, Requião lembra que construiu o parecer após ouvir todos os atores envolvidos com o tema, incluindo representantes do Judiciário e do Ministério Público Federal (MPF). “Essa lei é um avanço civilizatório e democrático extraordinário, porque ela criminaliza o abuso cometido não só por policiais, promotores, procuradores e juízes, mas também por fiscais da Receita, deputados, senadores, vereadores, ou seja, todos os agentes públicos. Ela reforça que o funcionário do Estado deve servir ao público, não trabalhar contra ele.”

 

Lei 13.869

Veja os principais pontos do texto
» Manter prisões sem fundamentos legais
» Continuar a interrogar preso que decidir ficar calado
» Decretar a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia superior ao
estimado para pagamento da dívida
Pena: de 1 a 4 anos

» Impedir conversa do preso com advogado, de forma reservada
» Manter presos de sexos opostos na mesma cela
» Divulgar gravação sem relação com a prova ou que exponha a intimidade
do investigado
Pena: de 6 meses a 2 anos