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Conflito histórico no Maranhão ganha novo capítulo

Levante de indígenas contra a Igreja Católica, em 1901, criou tensão entre os povos tradicionais no Maranhão e homens brancos. Ataques recentes revelam nova escalada de violência. BR que corta reserva na região é motivo de impasse

Renato Souza
postado em 15/12/2019 06:01 / atualizado em 10/08/2020 13:16
 
Desde 1º de novembro, conflitos envolvendo povos indígenas, moradores, fazendeiros e madeireiros na região do Maranhão tem chamado atenção do país e preocupado autoridades. Em um mês e meio, quatro integrantes da etnia Guajajara foram mortos em situações que ainda precisam ser esclarecidas. No entanto, os casos de violência na região tem origem histórica e começaram com uma grande tragédia no primeiro ano do século 20. O episódio é pouco conhecido nas demais regiões do país, mas ainda é assunto rotineiro nas conversas de cidades no interior do estado e gerou marcas na identidade dos indígenas e de povoados que circundam a Terra Indígena Cana Brava.
Décadas de descaso em relação às políticas públicas voltadas para as cidades e reservas indígenas da localidade agravam problemas e geram conflitos. Enquanto o governo federal declara que não vai demarcar terras indígenas e provoca mudanças em órgãos que atuam no setor, o risco de novos embates entre índios e a população local aumenta. O povo Guajajara é uma das maiores comunidades indígenas no país, com cerca de 12 mil integrantes em todo o território nacional. Apenas na reserva Cana Brava, vivem cerca de 4,5 mil. Uma manobra do governo para gerar economia, em 2001, gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é o principal motivo dos atos de hostilidade no local.
A reserva faz limites com três municípios: Barra do Corda, Jenipapo dos Vieiras e Grajaú. Para chegar até essas cidades, a população precisa passar pela BR 226, que por motivo de economia, foi construída de uma maneira em que um de seus trechos corta a Terra Indígena Cana Brava ao meio. Em decorrência do uso do território, os Guajajaras cobram pedágio de quem passa. De acordo com alguns moradores, ouvidos pela reportagem, apesar da cobrança ser voluntária, é comum que as pessoas sejam obrigadas a pagar ou deixar algo de valor para poder seguir viagem - quando a via é fechada pelos indígenas que realizam protestos na estrada. Essa é uma forma de gerar economia na reserva, que não integra, atualmente, nenhum programa de agricultura desenvolvido pela Fundação Nacional do Índio.
O professor Cláudio Braga, membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indiodescendentes (NEABI) do Instituto Federal de Educação do Maranhão, estuda linguagem, cultura e sociedade dos indígenas há 5 anos. Atualmente, ele dá aulas e atua nas pesquisas do campus do instituto em Barra do Corda. Para Cláudio, o fato da BR 226 passar por dentro da reserva indígena contribui para que aos conflitos aconteçam, porque várias casas são construídas ao lado da estrada, que tem um tráfego intenso de veículos.
 
"Na década de 90, antes do asfaltamento, a via não era tão trafegada por ônibus e caminhoneiros, mas no começo dos anos 2000 foi feito o projeto para asfaltar a estrada até Imperatriz, por conta disso o tráfego de veículos aumentou. No início da construção da estrada, ocorreu a seguinte dúvida: fazer o tangenciamento ou construir a estrada passando por dentro da reserva. A opção mais barata venceu. Se eu pudesse elencar quem é um dos maiores culpados pelos conflitos existentes aqui, eu diria que o governo tem a maior parcela de culpa. Porque, por uma questão de economicidade, construíram a estrada por dentro da reserva indígena Canabrava, quis economizar dinheiro e o resultado são esses embates constantes. A opção mais prudente seria a construção da BR por fora da reserva, assim a prática corriqueira de fechar a via a cada conflito envolvendo os indígenas não existiria. Assim como a atuação das forças policiais (polícia civil e militar) seria mais rápida haja vista que sempre que acontece algo lá é preciso chamar a polícia federal e a PRF para mediar os conflitos e liberar o tráfego de veículos.
Como a BR passa dentro da área deles (índios), eles argumentam que a terra é deles, o que de fato procede, e tem o direito de fechar e dizer quem passa e quem não passa. Essa é a questão", afirma.
[SAIBAMAIS]As doações e pedágios recolhidos na BR garantem a subsistência da comunidade indígena, já que a unidade não é alvo de nenhum programa de agricultura familiar por parte da Fundação Nacional do Índio. Dentro da reserva também ocorre a plantação de maconha, que é utilizada na fabricação de produtos como bolos e cachaças de cannabis. No entanto, o comércio da droga acaba se perpetuando pelas cidades vizinhas, e atraindo a população para o comércio ilegal, que é proibido fora da área indígena. Além disso, o aumento de assaltos, contra carros de passeio, ônibus e caminhões, realizados por criminosos que se escondem na reserva, tem preocupado passageiros e motoristas. Em alguns casos, índios, cooptados pelos delinquentes, participam dos atos criminosos. Procurada pela reportagem para saber sobre a assistência econômica ao povo Guajajara, a Funai não respondeu. O Ministério da Infraestrutura foi questionado sobre a possibilidade de extensão da BR, para contornar a reserva, mas não se posicionou até a publicação desta reportagem.


Banho de sangue


O levante de indígenas contra membros da Igreja Católica, no Maranhão, em 1901, ocorreu por diversas razões. Mas a principal foram informações desencontradas entre os povos tradicionais da região e a tentativa da instituição religiosa de catequizar os índios. Filhos do povo Guajajara foram levados por padres e frades para estudar em uma escola mantida pela igreja, a única da região. No entanto, como os índios apresentam menor resistência imunológica as doenças do homem não indígena, algumas crianças morreram após uma epidemia de sarampo. De acordo com registros da Igreja Católica, de 102 meninos e meninas, 50 crianças morreram na unidade de ensino.

Os indígenas pensaram se tratar do assassinato deliberado de seus filhos pelos religiosos, como conta o professor Cláudio Braga. ;Os filhos dos grandes fazendeiros estudavam na escola da missão dos frades e moravam lá e conviviam com os indígenas. Os frades e as freiras pegavam os filhos pequenos dos índios para criar. Teve uma epidemia de influenza e alguns filhos de índios morreram. Os indígenas, sem essa informação, pensaram que os frades estavam matando os filhos deles;, afirma.

De acordo com o livro ;O massacre de Alto Alegre;, escrito pelo Padre Bartolomeo da Monza, foi o maior massacre de índios contra homens brancos da história. O ataque ocorreu na hora da missa, às 5 da manhã. Os indígenas mataram as 4 freiras, 7 frades, 200 fieis e alguns fazendeiros que viviam na região. O levante foi liderado pelo indígena Caiuré Imana, que havia se convertido ao catolicismo, mas foi punido com castigos físicos por não aderir ao relacionamento monogâmico pregado pela igreja. ;Algumas famílias tradicionais perderam entes neste ataque. Até hoje os bisnetos e tataranetos estão na cidade, tem cargos influentes, são vereadores. Então esse preconceito contra indígenas existe até hoje. Existe essa animosidade histórica que vem no inconsciente coletivo da cidade;, completa Cláudio.

Em seu trabalho de pesquisa, o professor Carlos Eduardo Penha Everton, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) ouviu um líder indígena sobre o fato. Ele declarou que a igreja proibia os pais dos meninos indígenas de verem seus filhos que eram levados para a cidade. ;Aí ;vei; tal de varíola...[...] aí matou um bocado de criança...aí procuraram e disseram... ;não, só com cinco anos que ;pode; visitar os filhos;... [...?] fizeram um buraco e jogavam as criancinhas dentro (faz silêncio e ;olha para o nada;, reflexivo)...[...] eu não gosto de contar não, porque é tristeza;, disse Celestino Lopes Guajajara.

Parte da história é desconhecida pela própria população local. Após o massacre, em 13 de março de 1901, tropas do estado foram enviadas e nos meses seguintes dizimaram centenas de índios. Os mortos entre os povos tradicionais teriam se aproximado de 1 mil. Índios da etnia Canela teriam atuado junto às forças policiais, o que gerou uma divisão e conflito entre Guajajaras e Canelas, separação que dura até os dias atuais. De acordo com informações obtidas pela reportagem, a Igreja Católica decidiu, neste ano, voltar a realizar os trabalhos missionários entre os indígenas. No entanto, devido às mortes que ocorreram em novembro e dezembro, devem adiar seus planos.

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