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'Magistrado tem prerrogativa especial', diz primeira mulher a presidir AMB

Primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da AMB afirma que sua gestão será firme em defesa da proteção constitucional

postado em 25/11/2019 06:00

[FOTO1]Renata Gil de Alcântara Videira é a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), desde a criação, há 70 anos. Teve também o maior número de aprovação da história: 6.584 votos (80%). Na associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, ela também foi a primeira mulher a assumir a presidência (2016 a 2017). Renata Gil faz parte do grupo de trabalho, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui a política nacional de incentivo à participação feminina no Poder Judiciário. Ela assume em 11 de dezembro com o principal desafio de unir a magistratura, estabelecer o diálogo com o Executivo e o Legislativo e eliminar as barreiras de comunicação com a sociedade, a começar pela simplificação da linguagem. Sucessora direta do ex-presidente Jayme Oliveira, Renata destaca que sua gestão "vai ser firme e forte, como tem sido".

Em relação à inclusão dos magistrados em um possível pacote de mudanças administrativas, ela afirma que já está conversando com as partes para apontar as inconstitucionais. "Estamos em interlocução com o governo e com o Parlamento, para explicar que questões referentes à magistratura têm proteção constitucional. Quando se mexe na estrutura do Poder Judiciário, alterando salários, forma de acesso ou estabilidade, se mexe na proteção da sociedade", explica. Magistrados têm prerrogativas especiais que devem ser obedecidas, diz. "Não é questão de privilégio, é questão de proteção do Estado." Apesar da crise econômica e do ajuste fiscal, a classe insiste no direito à correção anual dos subsídios. Além da reivindicação a prêmios quinquenais para diferenciar o salário de quem entra e de quem está prestes a se aposentar.

Como a senhora se sente sendo a primeira mulher a assumir a presidência da entidade que completa 70 anos?

Muito orgulhosa. Na representação das mulheres, no momento em que o Brasil discute a ascensão feminina, a voz da mulher na sociedade. Além da honrosa função de representar os 18 mil juízes brasileiros. Na iniciativa privada, ainda se nota diferença de salários. E no serviço público, nos cargos de maior relevância, as mulheres não ascendem. Agora, as estruturas institucionais já estão discutindo os motivos desses entraves, alguns invisíveis. O CNJ criou uma comissão para intensificar a Resolução 255, que trata exatamente da participação feminina no Poder Judiciário. Faço parte dessa comissão. Sou chamada há muito tempo a falar sobre aumento do feminicídio e do subregistro desse crime. Como sou juíza criminal, tenho acompanhado essas discussões também no âmbito carcerário.

A senhora já atua em Brasília?

Desde 2008, tenho atuado fortemente, tanto em relação ao movimento associativo como no trabalho de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Sou integrante da estratégia nacional de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Fui a primeira juíza estadual a participar do movimento que criou a estratégia anticrime. O juiz Sérgio Moro (atual ministro da Justiça) trabalhava conosco, além do juiz Fausto de Santis, com a Receita Federal, Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que hoje é o IFI (Instituição Fiscal Independente). Todos esses órgãos, sempre em conjunto, construíram as políticas e o fortalecimento das instituições, de acordo com os tratados que o Brasil subscreveu, ou seja, com os seus compromissos internacionais. Agora, minha vida em Brasília será muito mais ativa no Parlamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), no CNJ, em alguns órgãos da República que a magistratura tenha que ter essa interlocução. Tenho um trânsito muito bom em Brasília.

A magistratura e o Poder Judiciário (também o Ministério Público) parecem abalados na credibilidade. Até o pacote anticrime do ministro Sérgio Moro não foi totalmente acatado no Legislativo. Como será sua atuação nesse campo?

Na verdade, não estamos em condição de suspeição. Estamos vivendo uma retaliação, em razão da atuação firme e independente dos juízes brasileiros. Isso é natural. Eu tenho dito que as instituições brasileiras democráticas estão consolidadas, que não há espaço para retrocessos. Todas essas tentativas de inibição, de constrangimento, da atuação dos juízes e de outras instituições responsáveis pelo combate às organizações criminosas serão possivelmente barradas pela força que o Poder Judiciário tem. E não sou eu que estou dizendo isso. As nossas prerrogativas estão entabuladas na Constituição. Não como proteção ao poder, mas como proteção da sociedade.

Na sua gestão, como vai ser a atuação da AMB?

Vai ser firme e forte como ela tem sido. A AMB hoje é uma grande interlocutora da sociedade. Estamos produzindo documentos importantes para a história da nação brasileira. A pesquisa que acabamos de desenvolver, chamada Quem somos e a magistratura que queremos, tem a apresentação de como o Judiciário pensa e como ele está estabelecido e consolidado hoje no país. Nós somos chamados em todas as audiências públicas, no Parlamento, no Supremo, para debater questões atinentes à magistratura. Como deve ser. Em determinados países, como Portugal, nenhum projeto de lei que toque em assunto relativo ao Judiciário pode ter seu andamento sem que a associação sindical seja ouvida antes. Esse papel hoje é exercido pela AMB de forma muito voluntária, é um reconhecimento do papel da AMB. E nossa ideia é de que esse papel se fortaleça a cada dia.

A reforma administrativa pode trazer mudanças que também serão impostas ao Judiciário. Como vai ser a relação nesses pontos com o Executivo e o Legislativo?

Parece que a reforma arrefeceu. O governo teria reformulado o ânimo da reforma administrativa, muito em razão do que tem acontecido no Chile, e depois também da reforma da Previdência. Embora haja uma sinalização do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), de intenção de aprofundar a reforma administrativa. Nós já estamos em interlocução com o governo e com o Parlamento, para explicar que questões referentes à magistratura têm proteção constitucional. Qualquer medida que venha em um pacote tem que ter uma interlocução com o Judiciário. Quando se mexe na estrutura do Poder Judiciário, alterando salários, forma de acesso, estabilidade, se mexe na proteção da sociedade. Se tem um juiz com instabilidade funcional, se ele perder aquelas garantias que foram pensadas como proteção, a sociedade fica exposta.

Como será esse debate?

O trabalho que temos feito é de expor que os membros de poder precisam ser protegidos. Vamos entrar no debate e dizer o que é e o que não é possível. Temos uma grande distinção na carreira da magistratura, que é vitalícia, e que deve ser igual para todos os seus níveis: aposentados e iniciantes. Houve uma quebra dessa paridade, dessa vitaliciedade, com algumas reformas constitucionais. Os que entraram depois de 2003 têm regime previdenciário diverso e aposentados não têm as mesmas garantias dos que estão na ativa. Isso tudo precisa ser repensado. A força do Estado brasileiro vai ser diminuída se continuarmos a atacar os seus pilares. Não é questão de privilégio, é questão de proteção do Estado.

A Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas) defende distinguir o subsídio dos que entram e dos que estão há anos na função, com majoração dos ganhos, a cada cinco anos. Diante da crise econômica, essa pauta se mantém?

Continua. Isso é importantíssimo para a carreira e vou dizer por quê. Tem que haver alguma diferença para o que entra no início da carreira e aquele que a deixa. O juiz não tem regime igual ao do trabalhador. Não recolhe Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), não tem regime de horário de trabalho igual ao de outro servidor. A gente leva para casa os nossos problemas. A função de julgar é imaterial. Concretiza-se em um determinado momento, mas a gente tem que burilar tudo até entregar para aquela pessoa que buscou a Justiça. Então, esse regime diferenciado gera distinções que precisam ser respeitadas. Defendemos, ao longo da carreira, o ATS (Adicional por Tempo de Serviço), que a gente chama de VTM (Valorização por Tempo na Magistratura), que está em uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição 63). É muito importante para o incentivo ao magistrado. Ele não pode chegar aos 20 ou 30 anos de carreira com o mesmo salário daquele que acabou de entrar.

Não seria o caso, como defende o governo, de reduzir o salário de entrada?

O governo tem essa sugestão. Só que tem uma situação que já é consolidada para 18 mil juízes. Não se pode mexer. E a gente também vai apresentar informações sobre a necessidade de uma remuneração condigna, por todas as limitações que a carreira tem e de não termos determinados benefícios sociais.

Os penduricalhos que permitem rendimentos de mais de R$ 600 mil já não são uma compensação ao FGTS?

Hoje o portal da transparência de qualquer tribunal pode ser acessado e aferido. Em determinadas situações, alguns magistrados têm verbas indenizatórias que recebem de uma só vez. Pelas decisões recentes do CNJ, esses recebimentos não são mais permitidos. Isso aconteceu no passado. Há verbas que estão consolidadas na Lei Orgânica da Magistratura (Loman), caso do auxílio-moradia que foi extinto. Há verbas que ainda não são universais. Nosso trabalho é de equalização, com relação aos federais e aos estaduais.

A reforma administrativa prevê a redução das férias de 60 para 30 dias, para igualar magistrados aos demais cidadãos. Alguns juízes vendem uma delas e embolsam o dinheiro. É justo ganhar duas vezes por receber férias e o salário?

Há PECs com essa proposição. Isso foi cogitado em tese na reforma administrativa. Se alguns magistrados não fazem uso dos 60 dias, isso é exceção. Em geral, nós fazemos uso por necessidade. Nós da AMB sustentamos que a profissão do magistrado é de risco. Tanto assim que tivemos inúmeros casos de vítimas. É uma profissão absolutamente estressante. A sociedade precisa entender que, como a magistratura é teto remuneratório, está distante do piso, o salário mínimo. Isso gera incompreensão, em um país com milhões de desempregados, em que há uma enorme desigualdade social. Em todos os países, categorias têm remuneração diferenciada. Isso não foi invenção nossa. Está na Constituição.

O que fazer para a população entender o significado de lei e de Justiça?

O Poder Judiciário vai ser bem compreendido quando for bem conhecido pela sociedade. A gente nota em determinados embates dos próprios parlamentares, principalmente os recentemente eleitos, que não conhecem a estrutura interna. Outro dia mesmo no debate sobre a permuta de juízes, um parlamentar me perguntou por que não pedimos também para os servidores. É discriminatório, disse o parlamentar. Aí explicamos que os servidores já têm esse direito.Temos que mostrar o funcionamento da Justiça.

Como?

A gente ainda não conseguiu apresentar para a sociedade esse trabalho, que é artesanal. Tem números, tem produtividade. Então, nosso desafio, como AMB, é diminuir o distanciamento com uma forma de comunicação mais direta. Temos as dificuldades de linguagem. O tempo do processo ainda não é o que nós esperamos. Por quê? Grande número de recursos e o funcionamento burocrático da máquina. São desafios que, eu, como presidente da AMB, quero trazer à discussão.

A AMB é a maior associação de magistrados, mas também vive em clima de divisão interna, arrependimentos e vaidades. Como a presidente vai lidar com isso?

Meu discurso interno e externo é de unidade. Sou uma pessoa agregadora por natureza. O que eu puder fazer para diminuir essa belicosidade, vou fazer. Existem, de todos os lados, pessoas de bem, comprometidas com o nosso bem maior. Nós somos o Estado brasileiro. Somos Brasil. Queremos o fortalecimento da nossa soberania. E eu quero que o Judiciário brasileiro seja referência mundial.

Qual o percentual proposto de aumento dos subsídios para 2020?

Não teremos reajuste, porque o Supremo não entregou o pedido, atendendo à regulamentação da limitação de gastos (a lei do teto). Há um percentual histórico a ser considerado, em torno de 16%, não concedido ao longo dos últimos anos. Houve um reajuste em 2016, mas não contemplou toda a defasagem. É importante dizer que não é um pedido que o Poder Judiciário faz porque quer. O regime de teto remuneratório, estabelecido na Constituição, prevê uma correção anual conforme artigo 39.

Mesmo em momento de crise?

Sim. Senão, a Constituição faria essa ressalva. Mas não faz exceção. O governo, por questões financeiras, teve que aplicar uma redução, e o Poder Judiciário obedeceu. Tanto que não enviou o pedido de reajuste. Mas há uma defasagem.

Essa é uma das questões que a sociedade não entende: entre o que a lei diz e o que é justo.

Exatamente. E está escrito. A recomposição do subsídio existe exatamente como proteção à independência do magistrado. Ele não pode ficam refém de pedir ao Parlamento. Pela independência dos Poderes, a Constituição previu que o Legislativo tem que fazer essa revisão. Lutaremos firmemente pela independência. Esse é o maior valor, o mais precioso, é a nossa joia rara.

Quais os desafios da sua gestão?

Se você trabalhasse internamente na AMB, ia ficar assustada com o volume de leis e PECs que alteram todo o funcionamento do Poder Judiciário. Essas peças vêm de parlamentares de diversos partidos. Cada um enxerga a Justiça de uma determinada forma. Essa profusão de PECs ocorre por falta de organização das pautas do Judiciário. A cada semana, somos surpreendidos com novas PECs, novos projetos de lei, ou desarquivamento de propostas que estão lá há 10 ou 15 anos. Só um exemplo: a lei de abuso de autoridade estava em dois diplomas legislativos. Nas 10 medidas anticorrupção. Veja: uma coisa completamente incompatível com o projeto do ministro Sérgio Moro. E tivemos esse item na própria lei do abuso, há dois anos parada, apesar de toda tentativa parlamentar em trazer à tona essa discussão no momento indevido, em que se avança nas investigações da Operação Lava-Jato. No tema, por exemplo, da vitaliciedade e da irredutibilidade, a gente tem PEC. Às vezes tem uma PEC tramitando no Senado e outra na Câmara. É muito difícil trabalhar de forma organizada. A AMB tem apagado incêndios.

É possível uma integração nesse clima?

É possível. Eu acredito no Estado brasileiro e na força das instituições, que são comandadas por brasileiros imbuídos de espírito público, de manter o país nos trilhos, de manter o país no caminho certo. Com eles, nós queremos dialogar.

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