Leonardo Cavalcanti, Augusto Fernandes
postado em 01/09/2019 07:00
Tal qual um acidente de avião, em que uma série de fatores determinam o desastre, a Lava-Jato segue uma trajetória de queda a partir de efeitos negativos produzidos pela própria equipe da força-tarefa e por atores do Executivo, Legislativo e Judiciário. A principal manobra foi feita de maneira não intencional pelos integrantes da operação em Curitiba, depois que os diálogos de procuradores vieram a público. Mas seria infantil acreditar que apenas os investigadores foram os responsáveis pelo desgaste.
A trama é muito mais complexa, envolvendo personagens de todos os poderes, que parecem torcer pela implosão da maior operação de combate aos desvios de recursos públicos e ao apadrinhamento do Brasil. Ainda há tempo para uma bela arremetida, porém, cada vez mais, existe pouco espaço para isso.
Na última semana, um entendimento de ministros da 2; Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) abriu precedentes para que fossem anuladas as penas impostas pela Justiça Federal do Paraná a até 143 dos 162 réus condenados pela Lava-Jato. Na terça-feira, o colegiado analisou um caso concreto da investigação e, de acordo com a maioria dos ministros, ao não estabelecer prazos distintos para que delatores e acusados apresentassem suas alegações finais (etapa processual que antecede a leitura da sentença), o então juiz da 13; Vara Federal de Curitiba, Sérgio Moro, desrespeitou a Constituição. A Carta Magna assegura ;o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; às partes investigadas. A situação se repetiu em pelo menos outras 32 condenações.
O caso fez com que, em menos de 48 horas, as defesas de três investigados entregassem habeas corpus à Corte pedindo a revisão dos processos dos seus clientes. Um dos documentos foi formulado pelos advogados do ex-presidente Lula, que solicitaram a suspensão da ação penal que investiga se ele recebeu propina pela empreiteira Odebrecht na compra de um imóvel para o Instituto Lula. O ministro Edson Fachin aceitou a tese da defesa e determinou que a ação penal retorne à etapa de alegações finais. O processo estava prestes a ser julgado pela 2; Turma. Para dar um veredito sobre qual deve ser a ordem para a apresentação de alegações finais entre réus delatores e réus delatados, os 11 ministros julgarão o tema, em data ainda a ser definida pelo presidente do STF, Dias Toffoli.
A ação na ;segundona;, como ficou conhecido o julgamento na turma, é apenas um dos problemas verificados na imagem da Lava-Jato. ;Não há poucas dúvidas sobre a multicasualidade do desgaste da Lava-Jato;, diz Pablo Holmes, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB). Para o professor, que também é mestre em direito, o maior problema da Lava-Jato é perder apoio popular. ;De imediato, o vazamento das conversas desfez as alianças dentro do Supremo, tirou a hegemonia do poder da Lava-Jato;, afirma Holmes. ;Isso não é ruim para a democracia, pois houve uma tomada de poder dos principais atores da operação, sem qualquer contraponto.;
Ao mesmo tempo, as investidas do presidente Jair Bolsonaro sobre os órgãos de investigação e controle têm enfraquecido reações do próprio Ministério Público e da Polícia Federal contra parlamentares interessados no desmonte da operação e mesmo magistrados, que, diga-se, passaram distante das apurações nos últimos anos. Ao segurar o nome do substituto da chefe da Procuradoria-Geral da República, Raquel Dodge, Bolsonaro enfraqueceu integrantes do MP, reféns da indicação política no órgão. Da mesma forma, ao sugerir a troca do diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, o presidente deixou a corporação apreensiva em relação a interferências políticas. O próprio Bolsonaro e Sérgio Moro negam qualquer ingerência para além do curso administrativo.
;Bolsonaro tem deixado os órgãos de controle sob vigilância contínua, e é claro que isso atrapalha os órgãos envolvidos diretamente nas investigações;, diz o deputado Luiz Flávio Gomes (PSB-SP), um dos juristas mais respeitados do país. Para o parlamentar, atos do Supremo também fragilizam a Lava-Jato, como a proibição do uso de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que favoreceu de imediato o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente. ;É um momento muito difícil para o país;, sentencia.
Segunda Turma
Enquanto isso, a ;segundona; repercute fora da Corte, inclusive entre ex-ministros do tribunal, que divergem sobre o caso. Segundo Sepúlveda Pertence, que ocupou uma cadeira no local entre 1989 e 2007, a 2; Turma acertou. ;Trata-se de privilégio da defesa, em qualquer procedimento penal, falar por último e responder, se for o caso, às alegações finais da acusação;, garante. Segundo ele, o entendimento deve ser mantido pelo plenário. ;Particularmente, acredito que a decisão da 2; Turma está correta. O relator vencido afetou o caso ao plenário, o que é uma decisão respeitável. Provavelmente, a expectativa é de que se manifeste mais uma vez a divergência por um único voto entre a 2; e a 1; Turma;, analisa o ex-ministro, acrescentando que o procedimento adotado para se ouvir os réus enfraquece o mérito da Lava-Jato.
;Essa força-tarefa de Curitiba, apoiada pelo então juiz, se sente soberana, tanto que a cada decisão do STF favorável à defesa, em qualquer hipótese, tem sido responsável por críticas, às vezes veementes e até grosseiras, ao Supremo Tribunal;, diz Pertence. Por outro lado, o presidente da Corte entre 1999 e 2001, Carlos Velloso, alerta que a decisão da 2; Turma foi tomada ;com base num princípio, o devido processo legal;. ;Isso é perigoso. É que princípios não têm conteúdo. Seu conceito é, portanto, indeterminado, cuja determinação deve apoiar-se em critérios objetivos. De regra, o melhor e o mais adequado desses critérios é a lei. Critérios subjetivos levam o jurisdicionado a sujeitar-se aos bons ou maus humores do juiz;, explica.
Velloso não acredita que a decisão da última semana tenha sido equivocada. ;Consubstancia um entendimento, do qual, entretanto, divirjo. Nem a lei específica, que cuida do tema, nem o Código de Processo Penal fazem tal exigência. Penso que não seria possível ao tribunal, invocando o direito de defesa, ampliar a norma processual. É que o devido processo legal, no qual se inclui o direito de defesa, exerce-se com base na lei processual;, frisa. De qualquer forma, Velloso frisa que as sentenças impostas pela Lava-Jato correm risco. ;Não há nulidade sem prejuízo;, destaca.
O caso mobilizou até a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que defende prazo comum para que delatores e delatados prestem as alegações finais. Segundo ela, a tese firmada pela 2; Turma do STF, de que há nulidade na concessão de prazo em comum para corréus colaboradores e não colaboradores apresentarem alegações finais, possui o potencial de afetar as milhares de condenações penais referentes a uma miríade de crimes e não apenas dos crimes que são usualmente objeto da Operação Lava-Jato. Até mesmo condenações transitadas em julgado podem, em tese, ser impactadas pela via da revisão criminal.
Juristas
O professor da Escola de Direito do Brasil (EDB) João Paulo Martinelli lembra que, dentro de um processo penal, eventuais nulidades nunca são causadas pelos réus, mas, sim, pelas autoridades envolvidas na ação penal. No caso da Lava-Jato, a Justiça Federal do Paraná. ;O investigado não pode praticar um ato e depois querer ter proveito disso. A culpa é exclusivamente do magistrado, que se recusou a abrir prazo diferenciado, apesar de os réus terem pedido;, ressalta.
A falha durante a condução do processo, para o doutor em direito penal Conrado Gontijo, evidencia ;uma das várias ilegalidades; da operação. Entre as falhas, ele cita as mensagens atribuídas a procuradores do Paraná que fazem menção principalmente ao ex-presidente Lula ; e divulgadas pelo site The Intercept e outros veículos de comunicação ;, que revelam supostas motivações pessoais e políticas dos membros do Ministério Público Federal (MPF) para investigar o petista.
;Se todas as ilegalidades forem reconhecidas, e elas são várias, a Lava-Jato morre. Estamos no momento mais nítido de que a operação se sustentou em cima de atitudes ilícitas, e a tendência é de que os tribunais deem importância a isso para assegurar as legalidades que até agora foram negadas;, afirma. Com as anulações, os inquéritos retornariam à fase de alegações finais. Assim, segundo o advogado criminalista João Paulo Martinelli, a Justiça Federal do Paraná ficaria sobrecarregada. ;Ela vai ter de redobrar os trabalhos para ouvir as alegações finais outra vez e impor as sentenças de novo. Enquanto isso, existem muitos processos pendentes, que ainda não foram julgados;, lembra.