Comércio e ideologia
O Brasil é um país grande e importante, mas que sempre teve medo do mundo lá fora. Durante quase toda nossa existência fomos uma economia isolada do resto do mundo, exportando poucos produtos, apenas o suficiente para pagar pelas importações essenciais.
Em nossa cultura econômica nosso ideal sempre foi produzir internamente tudo que a população demandava, mesmo ao custo de pesados incentivos, de altos impostos alfandegários, ainda que os produtos fossem caros e de baixa qualidade. Logo após a Segunda Guerra, a ordem era a industrialização por substituição de importações, o que nos proporcionou um vasto parque industrial voltado apenas para o mercado interno. Dentro das condições daquele tempo não era propriamente uma política equivocada, pois naqueles anos a globalização ainda não era uma realidade e o Brasil vivia sob as restrições de sua capacidade de importar.
Diante da dependência da importação de petróleo, de matérias-primas para a indústria e de máquinas e equipamentos, não tentamos a alternativa de investir no comércio internacional. Países que fizeram isso tiveram muito mais êxito do que nós, como é o caso da Coreia do Sul.
Isso gerou uma cultura compartilhada pela maior parte do país. A situação chegou ao auge durante o governo militar, quando as barreiras se sofisticaram, chegando ao paroxismo na famigerada Lei da Informática, que vedava a importação de qualquer produto de informática. Enquanto o mundo se engajava na revolução tecnológica, ficamos fechados em nosso casulo, isolando nossa indústria, inclusive a automobilística e condenando os brasileiros a consumir produtos inferiores e atrasados. É difícil imaginar o que se passava na cabeça daquelas pessoas, a maioria militar, ao conceber e implantar uma política tão desastrosa. Provavelmente, eram pessoas direitas, mas nunca poderemos perdoar-lhes a ignorância e a mente tacanha.
Aqueles tempos passaram. Depois dos anos 1970, dois acontecimentos mudaram o destino do país. O primeiro foi a revolução agrícola. De importadores de alimentos, sujeitos a periódicas crises de abastecimento, nós nos transformamos numa potência exportadora de produtos agrícolas para o resto do mundo, com saldos comerciais da ordem de R$60 bilhões por ano. Ao lado disso, grandes descobertas de petróleo pela Petrobras em alto-mar, nos tornaram grandes produtores e já exportadores de óleo. As limitações da capacidade de importar foram inteiramente eliminadas.
Tudo isso deveria nos levar a uma grande abertura econômica, integrando nossa estrutura produtiva às cadeias internacionais de valor. No entanto, os sucessivos governos mantiveram-se paralisados porque parte de nosso universo empresarial tirava vantagens de nosso isolamento comercial. O presidente Temer rompeu o impasse e empurrou as negociações para um Tratado de Livre-Comércio com a União Europeia que o governo Bolsonaro corretamente concluiu. Esse tratado deve ser comemorado, mas ainda levará tempo para entrar em vigor. Se tivesse sido firmado há 10 anos, já estaríamos vivendo sob suas regras, o que nos teria articulado com a economia mundial. O mesmo pode ser dito do Tratado de Livre-Comércio das Américas, que o governo Lula enterrou.
As forças do destino usam as mãos dos homens para cumprir os seus desígnios. Tudo o que poderíamos ter sido e que não somos é obra humana, de nossos governos e nossas elites econômicas. Essa abertura econômica pode, no entanto, ser abortada se a política interferir na lógica das relações comerciais. Os primeiros passos concretos deste governo são promissores. Já acenam com outros tratados com países importantes. Mas se considerações ideológicas ou alinhamentos automáticos com outras nações, que têm seus próprios interesses, turvarem a harmonia do comércio, pagaremos um preço alto.
Deixar de abastecer um navio mercante iraniano que veio aqui carregar milho que exportamos para o Irã é um sinal que será lido com preocupação por vários países, em todo o mundo, que compram nossa produção: China, países muçulmanos, Rússia e o próprio Irã.
Mais uma vez, a escolha é nossa.