Faz tempo que Brasília não vê tantas mudanças. Na sexta-feira, houve novo capítulo, com a posse dos novos deputados e senadores eleitos no ano passado. É uma renovação como não se vê desde a redemocratização, nos anos 1980, quando novas lideranças começaram a despontar no Congresso Nacional. O resultado disso ainda é uma incógnita, embora se note a tendência de facilidade para a aprovação de medidas liberais na economia, como privatizações e reformas, e conservadora nos costumes, incluindo a facilitação de porte de armas ou a redução do direito de aborto, que pode ocorrer hoje em casos de estupro ou de risco à saúde da mãe, por exemplo.
As urnas decidiram mandar para casa muitos dos parlamentares mais experientes. Alguns saíram por razões que os especialistas veem como positivas, como a rejeição aos sinais de enriquecimento ilícito com a atividade política. Mas, também de acordo com essa linha de análise, houve rejeição injusta a parlamentares que não conseguiram se livrar da imagem de estarem ligados ao passado. Com isso, o Parlamento perdeu muitas pessoas experientes, que estavam habituadas a trabalhar para a evolução de projetos de autoria do governo ou dos próprios parlamentares. ;As elites têm um papel fundamental na negociação de grandes acordos;, explica Paulo Calmon, diretor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB).
Na Câmara, há 251 novos deputados, mais do que os 244 que foram reeleitos. Outros 18 que entram não estão na legislatura que se encerra, mas tampouco são novatos: já tiveram mandato anteriormente. Um detalhe importante é que, dos reeleitos, 102 começaram o segundo mandato na última sexta-feira. Estão, portanto, longe de ser parlamentares com muita experiência. Os deputados com mais de cinco mandatos se limitam a 53, pouco mais de 10% da casa.
Apoio
O critério principal para ganhar o apoio das urnas foi a rejeição ao sistema anterior. ;Eles foram eleitos por ser contra tudo o que está aí, mas não necessariamente por terem propostas;, aponta Antonio Augusto de Queiroz, diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Análise Parlamentar (Diap).
A consonância entre a sociedade e as decisões que o novo Congresso vier a aprovar é, ainda, algo desconhecido, na avaliação de Queiroz. ;A eleição trouxe maior diversidade ao Parlamento, com mais negros, índios e mulheres. Por outro lado, alguns grupos ganharam representação maior da sociedade como um todo, incluindo lideranças evangélicas, militares, policiais, celebridades e parentes de políticos. Eles tendem a aprovar uma pauta mais conservadora;, explica. ;Impedir que ocorram retrocessos de fato nos direitos dos brasileiros é algo que vai depender da imprensa, do Judiciário e de organismos internacionais;, defende.
Para Calmon, a polarização que se viu nas eleições estará presente no novo Congresso, o que poderá levar a confrontos na tribuna. O resultado prático, porém, ainda é difícil de avaliar. ;Por serem tantos novatos, é preciso esperar um tempo para a aprendizagem e para que percebam que a capacidade de costurar políticas não depende tanto da ideologia, do discurso político;, destaca.
A dinâmica do Congresso vai depender, na avaliação de Queiroz, da atuação de três núcleos do governo: o econômico, o jurídico e o de costumes. ;O que importa mais ao governo realmente é aprovar as medidas do primeiro. Os demais vão entrar para desviar a atenção da discussão das medidas econômicas, de cunho liberal fundamentalista;, argumenta.
Repetição
A capacidade do governo de negociar com o Legislativo é algo que preocupa o filósofo Roberto Romano, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). ;Aparentemente, não existem pessoas suficientemente competentes nas negociações com o Congresso. Assim, repete-se à direita o que fez Dilma Rousseff, ao colocar Aloísio Mercadante e Gleisi Hoffmann para fazer isso;, argumenta.
Depois das eleições dos integrantes da mesa, restam as definições de comando das comissões. Muitas delas entraram como moeda de troca para a escolha da mesa. Na Câmara, a aposta é de que a Comissão de Justiça e Cidadania fique com o PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, cujos integrantes apoiaram Rodrigo Maia (DEM-RJ) na reeleição para a Presidência.
Independentemente das composições que vierem a ser feitas, Romano alerta para o fato de que as negociações políticas vão ser complicadas, e dificilmente trarão as mudanças que a população espera em termos de leis. Ele afirma que o Brasil enfrenta historicamente uma crise distributiva. ;No Império, temia-se que o país se desintegrasse. Isso só foi impedido pela distribuição de recursos, que são negociados entre o governo federal e as lideranças políticas regionais, algo que dura até hoje;, relata. Além disso, ele vê uma situação mais difícil em todo o mundo, devido ao descompasso entre os recursos disponíveis e a expectativa da população. ;O Estado vive uma crise em todo lugar. Mas os países ricos a enfrentam com uma Ferrari. Nós, com um Ford bigode;, compara.
O filósofo vê, portanto, poucas chances de que a renovação realmente traga algo diferente do que os brasileiros têm visto há tanto tempo.;O que teremos é mais do mesmo. Afinal, o caldo de cultura não mudou;, vaticina. A renovação do Congresso, alerta, não foi para melhor, ;a não ser por dois ou três bons novos parlamentares que foram eleitos;. O país está em posição muito pior, avalia, do que nos anos 1980, quando saía da ditadura militar e tinha, no Congresso, pessoas como Mário Covas e Ulysses Guimarães, entre outros.
Mas o próprio Ulysses afirmava que não era possível contar com a eleição de parlamentares melhores. ;Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espera a próxima: será pior. E pior, e pior;;, comentou nos anos 1980. ;Temos algumas poucas cabeças boas aqui. É necessário juntá-las, onde quer que estejam, e fazê-las trabalhar num rumo só: para frente. Sempre;.