Bernardo Bittar, Gabriela Vinhal
postado em 12/05/2018 07:00
Quarto presidente da ditadura militar brasileira, Ernesto Geisel era, até então, lembrado como um ditador que não apoiava execuções de inimigos políticos, além de ser o responsável por dar início à democracia no país. No entanto, a história começa a ser reescrita após a divulgação do memorando secreto do Departamento de Estado dos EUA sobre assassinatos e desaparecimentos com o aval de Geisel. Segundo o levantamento do Correio, de 1; de abril de 1974 até o fim do regime militar, ao menos 89 pessoas foram mortas ou desapareceram no país. Os dados obtidos equivalem a pouco mais de 20% de 434 mortes e desaparecimentos durante o regime militar. O levantamento foi feito a partir da análise do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), instaurada em 2014, ainda no governo da presidente Dilma Rousseff.
O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, disse ontem que a divulgação do memorando da CIA, que acusa Geisel de ter endossado a execução de presos políticos, não afeta o ;prestígio; das Forças Armadas. Ex-ministro da Defesa, Jungmann afirmou ainda que o governo não teve acesso ao documento de forma oficial, mas garantiu que alguma medida deve ser tomada. ;O prestígio das Forças Armadas permanece no mesmo nível. As Forças Armadas são um ativo democrático, isso não é tocado por uma reportagem;, minimizou, em coletiva de imprensa.
O advogado e coordenador da CNV, Pedro Dallari, afirmou que o documento é ;estarrecedor; e reforça o posicionamento da comissão de que as Forças Armadas devem reconhecer a responsabilidade institucional pelas execuções. ;É um documento estarrecedor, sem dúvida nenhuma, porque descreve com minúcia uma conversa que evidencia práticas abjetas e que um presidente da República com sua equipe tratou do extermínio de seres humanos;, disse Dallari ao portal G1.
Em nota, o Ministério Público Federal (MPF) disse que o documento do governo americano revela ;nova evidência de que a repressão política pela ditadura militar incluiu uma política de extermínio de opositores do regime; e defende que a revelação trazida pelo memorando convida para uma resposta breve do Estado brasileiro em favor da promoção da Justiça, e que o Supremo Tribunal Federal (STF) deveria abrir o diálogo sobre a decisão que validou a Lei de Anistia à luz do direito internacional. A reportagem procurou a Agência Brasileira de Inteligência, Exército Brasileiro e o Superior Tribunal Militar. Contudo, não houve resposta.
;A verdade apareceu;
A jornalista Hildegard Angel fez um depoimento emocionado ao Correio em que acusou Geisel de ser responsável pela morte da mãe dela, em 1976. ;Recentemente, um delegado contou com detalhes essa história na Comissão da Verdade. Foi a terceira vez que reconfirmaram a ordem para matar Zuzu Angel. Aquilo foi um ;cala-boca; que deram nela. Esse homem respondia diretamente ao gabinete de Geisel.;
Zuzu era mãe de Stuart Angel, um estudante que desapareceu e foi declarado morto em 1971. Ele teria sido torturado e assassinado pelos militares, segundo documentos da época. O motivo do atentado contra Zuzu teria sido justamente esse. ;Ela procurou o corpo do meu irmão durante anos. Descobriu muito em uma época difícil. Os anos eram negros, tudo era um mistério e quem tinha informação tinha tudo. Ela incomodou e pagou o preço;, concluiu a jornalista. A morte de Zuzu e do jornalista Vladmir Herzog estão entre as mais emblemáticas que ocorreram durante a gestão do general.
Para Georgete Medleg Rodrigues, historiadora, professora de Arquivologia da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora sobre o acesso a documentos da ditadura militar, o documento só revelou o que já era suspeito pelos estudiosos. Ela afirma ainda que a surpresa acerca do documento se dá porque houve um erro de interpretação a respeito da gestão de Geisel no país. ;Ele era um ditador e seu regime passava a imagem de abertura lenta, segura e gradual ao Brasil. Mas nos porões continuavam as ações de tortura e assassinatos em sua gestão;, acrescentou.
Já o historiador Rodrigo Motta avalia que a disponibilização do documento não surpreende, mas veio em um bom momento. ;Muitas pessoas têm apoiado a volta do regime militar, porque acham que foi ótimo para o Brasil. Elas acreditam que a ditadura não foi tão violenta assim. Mas, à época, o Exército escolhia quem viveria e quem morreria. É preciso entender o quão importante é viver em democracia;, completou.
Tornado público na quinta-feira, o documento do governo dos EUA revelou uma conversa entre Geisel e generais que estavam à frente do Centro de Inteligência do Exército (CIE) e do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) do país. Queriam discutir sobre como tratariam os opositores políticos ao regime. Geisel havia recém-assumido o cargo de presidente da República, em 30 de março de 1974, quando ele, o general Milton Tavares de Souza, o general Confúcio Danton de Paula Avelino ; respectivamente os chefes do CIE ; e o general João Baptista Figueiredo, do SNI, se reuniram para traçar estratégias de trabalho para conter a ;ameaça subversiva e terrorista;.
Segundo o memorando norte-americano, Tavares ressaltou que ;métodos extralegais devem continuar a ser empregados contra subversivos perigosos;. Figueiredo teria apoiado a conduta e insistido para dar continuidade ao processo. Já Geisel teria afirmado que precisaria de um tempo para refletir sobre o assunto e chegar a uma decisão. Mas, em 1; de abril, o ex-presidente teria determinado que a política de execuções continuasse. No entanto, ;com muito cuidado;.
Quem é quem
; Geisel
Ernesto Beckmann Geisel foi um ditador militar que esteve à frente do Estado brasileiro entre 1974 e 1979. Documentos revelados pela Central Intelligence Agency (CIA, a central de inteligência dos Estados Unidos), mostram que ele autorizou a execução de inimigos no período em que esteve no poder.
; Figueiredo
João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Inteligência do Exército à época do regime Geisel, teria apoiado a conduta de execução de presos políticos. Foi o último presidente, de 1979 a 1985, da ditadura militar no Brasil.
; Avelino
Confúcio Danton de Paula Avelino foi o chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE) durante o governo de Ernesto Geisel.
O general de brigada era quem informava o ditador sobre acontecimentos que demandavam mais cuidado, como as execuções dos inimigos políticos do ;governo;.
; Milton
Milton Tavares de Souza era o chefe do Centro de Inteligência do Exército de Emílio Garrastazu Médici, que comandou o Brasil antes de Geisel. Ele conduziu a maior parte da conversa revelada pela CIA que mostrou a dinâmica dos assassinatos de opositores à ditadura militar no país à época em que era o homem forte do regime.
Uma linha ;moderada;
O general Ernesto Geisel assumiu o poder indiretamente em março de 1974. O governo do militar era conhecido por pertencer à uma linha ;moderada; das Forças Armadas ; pregava que o regime autoritário seria transitório para restaurar a democracia no país.
Apesar do intuito de diminuir a repressão contra opositores, o governo de Geisel acabou marcado pela morte do jornalista Vladimir Herzog, em outubro de 1975. Ele foi encontrado enforcado e, à época, os militares afirmaram ter ocorrido um suicídio. Foi durante o regime do general que houve a transição para a democracia, que ele mesmo teria designado como ;lenta, gradual e segura;.
Durante a gestão do militar, algumas prerrogativas dos Atos Institucionais ; decretos emitidos durante o regime ; expiraram, como o caso da cassação aos direitos políticos de algumas personalidades pelo AI-1, e outras foram suplantadas, como a proibição à propaganda política pelo AI-5.
No fim do governo Geisel, em 1978, foi anulado a AI-5, dando início, oficialmente, à abertura do regime militar. Em 15 de março de 1979, o general deixou a Presidência da República, sucedido pelo general João Figueiredo. Agora, com a divulgação dos documentos do governo norte-americano, o capítulo sobre gestão de Geisel, durante a ditadura militar no Brasil, poderá ser reescrito.