Durante viagem oficial à Itália, Maia, em tom mais ponderado, avaliou que as declarações de Torquato são pertinentes, mas questionou a maneira usada pelo colega. ;Acho que ele falou muita verdade ali, só que não sei se foi da forma adequada. Eu acho que, talvez, aquela entrevista valesse depois de uma ação da polícia, com meses de investigação, pegando aqueles que estão boicotando as ações de segurança no Rio;, disse o presidente da Câmara ao jornal Folha de S.Paulo. Na quarta-feira, Maia classificou as palavras do ministro como ;infantis; e ;irresponsáveis;.
O recuo do democrata, pré-candidato à reeleição, foi vista, nos bastidores, como uma reconexão com a maioria da sociedade carioca, que concorda com a afirmação de Torquato. À imprensa, o ministro afirmou que há uma associação de policiais do Rio em cargos de comando com o crime organizado. Agora, não somente Maia, como também Temer procuram colocar panos quentes sobre a polêmica. Pessoas próximas do peemedebista garantem que ele pediu ao auxiliar que evite dar novas declarações sobre o assunto. O Palácio do Planalto quer evitar atritos com o presidente da Câmara, pensando nas agendas econômicas que devem entrar em breve em votação.
Rodrigo Maia, por sua vez, tenta evitar desgaste com Temer. A fatura pela permanência do peemedebista na Presidência ainda está sendo paga, como a Medida Provisória que prevê a permissão para que o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) tenha acesso aos fundos regionais de desenvolvimento. O chefe do Executivo Federal também assinou um contrato de R$ 652 milhões para obras no Rio. Os esforços entre Câmara e Planalto, no entanto, estão concentrados na reforma da Previdência. Maia não esconde o desejo de aprovar o texto, que dependerá de uma ampla articulação entre os dois Poderes.
A agenda das reformas, no entanto, é apenas o começo para um longo processo de recuperação da crise moral, ética e econômica do Rio. Afinal, a Cidade Maravilhosa precisa enfrentar notórios percalços, como a crise entre os representantes políticos e a escalada da violência pública. Nada menos do que dois ex-governadores cariocas, Anthony Garotinho e Sérgio Cabral Filho, estão presos. O atual, Luiz Fernando Pezão, é acusado de receber via caixa dois dinheiro de propina nas eleições de 2014. Cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio, que deveriam zelar pela aprovação das contas, são investigados por corrupção.
São exemplos de nomes fortes que surgiram na política da capital fluminense, ganharam projeção nacional e, hoje, não representam nada além de um estado em frangalhos. Doutor em filosofia e professor de Ética Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Roberto Romano avalia que a decadência do Rio de Janeiro não é nova, tendo surgido com a migração da capital do Brasil do Rio para Brasília. ;Essa mudança criou um vácuo de poder e de capacidade, inclusive, de manusear recursos. Assim, os cariocas, acostumados a ter dinheiro e poder, perderam os dois. Essa lacuna precisou ser preenchida;, avaliou, justificando a origem das relações entre bandidos e autoridades locais.
A simbiose entre autoridades públicas e os grandes nomes do jogo do bicho, do tráfico é algo antigo, ressalta Romano. ;Sempre foi comum ver os donos de negócios escusos nos palanques tentando eleger candidatos. Aí entra a velha tradição brasileira de trocar favor. Como eu, você e todos os brasileiros vimos ultimamente, essa tradição continua funcionando com força total;, acrescentou.
No meio do embate sobre a eficácia da polícia carioca, um triste incidente aconteceu ontem: o menino de 3 anos que foi atingido, na última quarta-feira, por uma bala perdida enquanto brincava no sofá de casa teve a morte cerebral declarada. Um dia antes, o policial Rafael Santa Ana Corrêa foi assassinato em uma drogaria. O cabo foi o 114; integrante da Polícia do Rio de Janeiro morto em 2017.
Silêncio
O poder carioca resolveu contra-atacar e processará o ministro da Justiça, Torquato Jardim. Do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão aos comandantes da Polícia Militar, todos questionam as declarações dadas por Torquato de que a cúpula da PM está controlada pelo crime organizado. Questionado, o presidente Michel Temer preferiu não se envolver na polêmica para não dar mais espaço à crise.
O silêncio que permeia o Planalto também chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que deve julgar a interpelação proposta por Pezão. Para o ministro Marco Aurélio Mello, é necessário aguardar os desdobramentos antes de qualquer declaração. ;Não posso comentar esse caso porque um de nós (ministros) pode acabar sendo relator;, disse. O Correio também entrou em contato com Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que preferiram não se manifestar sobre o assunto.
O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), no entanto, rompeu a falta de expressividade dos poderosos e disse que ;todo mundo que mora no Rio de Janeiro sabe que as palavras do ministro são verdade;. Outros integrantes do parlamento que concordam com Torquato dizem que, embora ele esteja certo, foi imprudente e exagerado.
Estado em deterioração
Entre as unidades da federação, o Rio de Janeiro é, talvez, a que mais personifica a escancarada crise ética, moral e econômica que assola o país. Entenda os principais atores e fatos que o levaram à atual situação:
Corrupção
Desvio de recursos públicos, recebimento de propina, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa são alguns dos delitos pelos quais representantes públicos do Rio foram condenados ou acusados.
; Anthony Garotinho: o ex-governador foi condenado a 9 anos e 11 meses de prisão por corrupção eleitoral, associação criminosa, supressão de documento público e coação. A avaliação da Justiça é de que ele comprou votos para a mulher, Rosinha Garotinha, ser reeleita à prefeitura fluminense, em 2016. Ele chegou a ser detido, mas, por decisão do STJ, aguarda julgamento de recurso em liberdade.
; Sérgio Cabral Filho: o ex-governador foi condenado a 45 anos e 2 meses de prisão, considerado como o ;grande líder da organização
criminosa; que possibilitou o desvio de milhões dos cofres públicos do estado. Cabral está preso desde novembro do ano passado no complexo penitenciário de Gericinó, em Bangu. Ex-diretores da construtora Odebrecht apontam pagamentos de R$ 94 milhões a ele, que também é suspeito de ter recebido propina durante as Olimpíadas e de ter comprado votos para escolher o Rio como a sede do evento. Uma família ligada a ele foi presa por desvio de recursos da merenda escolar.
; Eduardo Cunha: o ex-presidente da Câmara dos Deputados e um dos mais influentes políticos
do Rio de Janeiro foi condenado a 15 anos e 4 meses de prisão por corrupção passiva devido a solicitação e recebimento de vantagem indevida no contrato de exploração de petróleo em Benin, na África. Cunha está detido em Curitiba desde outubro do ano passado.
; Luiz Fernando Pezão: o atual governador do Rio é acusado de recebimento de propina da Odebrecht nas eleições de 2014. Ex-presidente da construtora Odebrecht afirma que teria pagado, via caixa 2, R$ 20,3 milhões na campanha eleitoral.
; Jorge Picciani e conselheiros do TCE: cinco conselheiros do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro foram presos por suspeita de recebimento de propina de 1% sobre valores de contratos de empreiteiras. As investigações apontam que eles recebiam dinheiro para fazer vista grossa e aprovar obras, como a do Maracanã e a da linha 4 do metrô. O presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Jorge Picciani, foi alvo de condução coercitiva para prestar depoimento após ter o nome citado em acordo de delação por um ex-conselheiro.
Economia
A crise que estourou em 2015 só escancarou o desequilíbrio das contas públicas do Rio. Antes disso, o governo já vinha elevando muito os gastos públicos, inclusive com servidores, ancorado na valorização do barril de petróleo no mercado externo. Uma lei de 2003 previa o pagamento de aposentadorias com uso dos royalties, mas o arrefecimento da atividade econômica e a queda do preço do barril provocaram queda nas receitas, enquanto os gastos se mantiveram em crescimento, principalmente o da Previdência.
Segurança pública, saúde, educação
O orçamento comprometido pela crise econômica provocou um efeito cascata altamente danoso e negativo sobre os serviços públicos. Policiais passaram a ter menos incentivos, o sistema de saúde entrou em colapso, com deficit de médicos, insumos, medicamentos e atrasos em atendimentos. A educação seguiu o mesmo caminho: organizações não governamentais acusam a secretaria estadual de fechar turmas.