Segunda Guerra Mundial, Era Vargas, Golpe de 1964, caçadores de marajás. Todos esses episódios têm algo em comum com o momento político que os brasileiros enfrentam atualmente. No entanto, a crise de agora tem contornos mais graves quando se observa a corrupção. Essa é a avaliação feita pelo historiador Antonio Barbosa, professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).
O pesquisador, que tem 44 anos como estudioso da história da política brasileira, observa que a corrupção foi ;elevada ao estado da arte; durante os governos petistas e agora com o governo peemedebista. Para ele, Michel Temer não tem condições de manter a governabilidade, mas é preciso seguir a Constituição sob risco de o país entrar em colapso. Nesse sentido, o historiador avalia que mudanças na Constituição para realizar eleições diretas poderiam ser consideradas um golpe, semelhante ao de 1964, abrindo oportunidade para figuras autoritárias chegarem ao poder.
Como o senhor percebe o atual momento político do país?
Estamos vivendo uma crise muito profunda. Sob determinados aspectos, eu, enquanto historiador, observo que ela faz lembrar agosto de 1954, que culminou no suicídio de Vargas. A expressão da época era ;mar de lama;. O que estamos vivendo no Brasil hoje é algo parecido.
O que diferencia os dois períodos?
A corrupção. Sempre houve corrupção no Brasil, mas é indiscutível que o PT elevou a corrupção ao estado da arte, a transformou em um método, um verdadeiro sistema. A crise é profunda porque a corrupção, tal como ela foi desvelada pela Operação Lava-Jato, mexeu com o imaginário popular. Eu diria que, a partir das manifestações de junho de 2013, a população começou a acordar e, naquele momento, ela queria o PT fora do poder, porque ela identificava no PT esse suprassumo da corrupção. A coisa evoluiu e chegamos com Michel Temer à Presidência.
[SAIBAMAIS]
E na sua opinião, Temer tem condições básicas de continuar como presidente da República?
Não. Ele está muito aquém. Mas a questão é que nós pretendemos viver num estado democrático de direito. Nesse estado, as leis têm que ser cumpridas. O problema maior é que o governo Michel Temer se mostrou desde o início pessimamente mal estruturado, exceção feita à área econômica. E sob esse aspecto, ele está conseguindo quase um milagre, porque, no trágico governo Dilma, a economia brasileira foi completamente desestruturada. Mas a estrutura política do governo Temer é incompreensível e inaceitável. Politicamente falando, vai se tornando insustentável.
Como o senhor avalia a denúncia da PGR contra Temer?
A denúncia que chegou é inepta. Eu achava que chegaria algo mais consistente, mas é a repetição de muito do que já foi apresentado. Mas se chegarem outras denúncias mais robustas, acredito que a Câmara deva autorizar a condução do processo pelo STF e afastar o presidente, tudo isso respeitando a legalidade. O mais importante para o bem do Brasil é que o Estado democrático de direito não seja arranhado. Num país presidencialista, caso do Brasil, ter um presidente acusado e investigado é muito ruim, gera uma grave instabilidade.
Tendo em vista que é a primeira vez que um presidente é acusado por crime comum durante o mandato e que há um movimento pedindo eleições diretas, o que o senhor acredita que vai ocorrer nos próximos dias?
Em 1961, por muito pouco o país não entrou em guerra civil. Foi a renúncia de Jânio Quadros, e os militares decidiram que o vice constitucionalmente eleito (João Goulart) não tomasse posse. Leonel Brizola, que era um dos grandes nomes da esquerda, se transformou num herói da resistência da legalidade. Em 1963, esse mesmo Leonel Brizola começou a gritar ;reforma agrária, na lei ou na marra;. Quando ele fala ;na marra;, está dando um chute no Estado democrático de direito. Veio o Golpe de 1964 e o povo aplaudiu. O que estamos assistindo em 2017 é algo parecido. As esquerdas, de uma forma geral, acompanhadas por uma direita que não compreende nada, defendem um golpe, defendem rasgar a Constituição, mudar a Constituição. Não pode ser assim.
Quais são os riscos dessa mudança na Constituição para, por exemplo, promover eleições diretas caso o presidente renuncie ou seja demitido?
Pode abrir para o autoritarismo. A história do século 20 está cheia de exemplos. Depois da Primeira Guerra Mundial, na década de 1920, o mundo disse ;chega!” para a política tradicional. O resultado foi Mussolini na Itália, Adolf Hitler na Alemanha, Getúlio Vargas no Brasil. E se não abre para o autoritarismo, abre para o salvacionismo, algo parecido com o que aconteceu em 1989, quando o Brasil colocou no segundo turno Collor e Lula, o que, como vimos, foi quase um suicídio político.
Por que não foi um suicídio político?
A história me ensinou que os países não se suicidam. Quando a gente pensa que está no mais profundo abismo, na escuridão total, a luz começa a aparecer. Nem que seja aos trancos e barrancos, vamos construir algo melhor.
O senhor acredita que a população sai dessa crise mais amadurecida politicamente?
A sociedade sai mais amadurecida porque o sofrimento depura. Mas não vai ser um passe de mágica. Se você olhar o que já fomos, a sociedade melhorou mais do que o Estado. Hoje, quando uma mulher é agredida, há uma consciência que se levanta contra isso. Até 1950, a lei não ia além dos portões das fazendas. O senhor todo-poderoso, coronel, nunca seria atingido pela lei. Hoje temos grandes empresários brasileiros presos, um ex-presidente da Câmara preso. Há uma explosão tecnológica da qual o Brasil faz parte que modifica muito a maneira de a gente ser e pensar.
Como o senhor imagina que os brasileiros do futuro vão compreender o atual momento que passamos?
No futuro, vai se dizer: a crise de 2017 selou o fim do sistema político brasileiro como ele funcionava até então. Isso significa que os partidos vão ter que se reinventar. Significa que reformas na legislação eleitoral terão que acontecer. O fim das coligações vai acontecer. Daqui a 50 anos, as pessoas nem vão acreditar que no Brasil nós tínhamos uma excrescência chamada ;suplente de senador ou de deputado;. Isso vai acabar pela sobrevivência da própria política.