Falta um juiz para julgar a imoralidade nas estruturas sociais brasileiras. Quando a realidade exige mudanças nas estruturas, não fazê-las é uma forma de corrupção. Por 300 anos, nenhum juiz julgou ilegal a escravidão. Aceitamos a maldita estrutura da servidão de seres humanos trazidos da África. Até hoje, temos latifúndios improdutivos com terras sem homens e milhões de homens sem trabalho fora da terra. Isso é permitido pelas leis que protegem uma estrutura tão corrupta quanto a escravidão. E não há juiz para julgar essa imoralidade.
Desde a Proclamação da República temos uma bandeira com um texto escrito nela. Quase 130 anos depois, temos duas vezes mais adultos analfabetos, fabricados pela imoralidade, com a qual a estrutura educacional ;republicana; trata aos pobres. Desde a infância, nossas crianças são apartadas, separando aquelas tratadas com todo cuidado e com boas escolas e as que sofrem fome, não têm escola e caminham para um destino perdido. Isso é mais do que desigualdade social, é imoralidade, corrupção da estrutura educacional, sem que juízes julguem os culpados ao longo das últimas décadas. Também é mais do que desigualdade, a imoralidade da estrutura nos serviços de saúde, que apesar do esforço do SUS, distribui desigualmente o tempo de vida e de saúde dos brasileiros, conforme a renda que dispõe cada um deles. É como se, graças à estrutura social, aqueles que têm dinheiro pagassem uma propina ao sistema nacional de atendimento médico e, assim, pudessem comprar mais anos de vida e com o conforto da saúde bem atendida.
Por toda nossa história recente, os recursos públicos são distribuídos entre os que têm força de pressão, gastando-se ainda mais do que o muito que se arrecada em um sistema fiscal que isenta ricos e penaliza pobres. E sobre eles joga-se o preço da inflação, roubando-lhes o valor do pouco salário que recebem; e sobre as futuras gerações joga-se o peso do endividamento. A inflação é uma corrupção generalizada: rouba dinheiro de todos e ainda mente dizendo que oferece aumentos a cada período de tempo.
O roubo vai para o governo e para os que recebem seus serviços e para aqueles que conseguem remarcar preços, aumentar juros ou conseguir aumentos de salários, os outros são lesados, como se um gigantesco ladrão batesse legalmente a carteira do povo. Mas o sistema judiciário não julga o crime da irresponsabilidade fiscal nem o crime do endividamento que rouba as gerações futuras, obrigadas a sacrificar receitas para pagar dívidas contraídas no passado sem seu consentimento. A estrutura social e política brasileira é um sistema de propinas disfarçadas.
Finalmente, o sistema judiciário está tentando desvendar e punir os culpados pelo roubo direto por propinas financeiras, mas o Brasil ainda não despertou para os brutais vazamentos que decorrem da própria estrutura social, que exige reformas urgentes: no sistema fiscal que protege ricos; na propriedade da terra que exclui trabalhadores; na legislação trabalhista que prejudica os jovens e os desempregados; na previdência que beneficia uns poucos e ameaça todos em um futuro não muito distante; uma reforma orçamentária que impeça as corporações patronais ou de trabalhadores jogarem a dívida sobre as futuras gerações, impor taxas de juros agiotas e inflação que corrompe o salário dos trabalhadores brasileiros.
Mas essas reformas, que seriam para a estrutura socioeconômica o que os julgamentos da Lava-Jato são para a propina, só virão de fato quando forem feitas as duas reformas-mãe: na maneira como fazemos política e no sistema como educamos as crianças. Dificilmente, porém, essas duas serão feitas na dimensão necessária: assegurar todo poder ao povo, e não só a ilusão do voto; e garantir que o filho do mais pobre tenha a mesma chance de estudar em escola com a mesma qualidade que o filho do mais rico.
Contra essas duas reformas, o Brasil assiste a uma aliança antinacional, na esquerda e na direita, contra as reformas necessárias. Defendem a manutenção do status quo a serviço dos privilégios de alguns trabalhadores e dos patrões. E não temos juízes para julgar a corrupção do discurso que justifica a corrupção da estrutura. Salvo os historiadores, quando os atuais atores do processo social já estiverem todos mortos.