São Paulo ; A Comissão Nacional da Verdade também vai investigar os crimes praticados durante a ditadura militar contra os povos indígenas, com a participação ou a conivência do Estado. ;É um tema que está no nosso planejamento. Vamos investigar isso, sim, porque na construção de rodovias há histórias terríveis de violações de direitos indígenas;, ressaltou nesta semana um dos membros da comissão, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, após encontro com o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
O Grupo Tortura Nunca Mais vem se articulando com outras entidades, como a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, para reunir material sobre as violações contra os índios no período da ditadura. Segundo o vice-presidente do grupo, Marcelo Zelic, a política de extermínio promovida pelo regime é evidenciada em documentos públicos, como os que mostram que, na década de 1960, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados para apurar os massacres de indígenas.
;Essa comissão é criada logo após a Comissão de Inquérito do Ministério do Interior ter produzido um relatório de 5.115 páginas.; O documento, de acordo com Zelic, desapareceu depois que o governo baixou o Ato Institucional n; 5 (AI-5), endurecendo o regime inaugurado pelo golpe de 1964 e aumentando a perseguição política a seus opositores.
;Nesse relatório estavam contidas as denúncias de corrupção no SPI [Serviço de Proteção aos Índios], antigo órgão que cuidava da tutela do índio. E esse relatório continha um estudo realizado pelo procurador-geral da República com os vários casos de violações de direitos humanos contra as populações indígenas;, completa.
Funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) na década de 1970, o índio potiguar José Humberto do Nascimento, conhecido como Tiuré, foi testemunha de diversas ações dos militares contra os povos tradicionais. ;A política indigenista oficial era de extermínio.;
De acordo com Tiuré, esses povos sempre foram tratados com descaso, mas o projeto de desenvolvimento do regime, associado a interesses estrangeiros, intensificou as perseguições. ;O índio nunca foi respeitado, desde a época da colonização, mas não existia um extermínio tão sistemático como foi na ditadura.;
Tiuré conta ainda que quando percebeu as violências que eram praticadas contra os povos tradicionais resolveu deixar a Funai e atuar diretamente na defesa dos interesses das comunidades indígenas. Ele diz que esteve no sul do Pará, onde encontrou aldeias que eram exploradas em condições análogas à escravidão na extração da castanha. Segundo Tiuré, alguns militares se beneficiavam diretamente dessa situação.
Poucos anos mais tarde também presenciou os impactos negativos dos grandes projetos de infraestrutura, como a construção da Hidrelétrica de Tucuruí e de estradas que cortavam os territórios índigenas. Como as comunidades resistiram, Tiuré relata que houve confronto, inclusive com a prisão e morte de índios.
;O Exército chegava com a parafernalha militar, com aqueles comboios de jipes, atirando para cima, demonstrando a força que eles tinham. O confronto era direto, porque os índios enfrentaram. Com isso houve prisões, tortura, diversas formas de violações.;
Nessa época, Tiuré diz que voltou para a Paraíba, seu estado natal. Lá participou da resistência dos índios ao avanço da monocultura da cana-de-açúcar sobre as terras indígenas, impulsionada pela iniciativa governamental do Pró-Álcool. ;Teve confronto, teve morte. Foi nesse momento que eu fui pego, sequestrado, torturado, colocaram fogo na minha residência;, conta sobre os confrontos contra a polícia e os capangas das usinas.
Por causa de histórias como essas, Marcelo Zelic defende que os índios devem ser ouvidos pela Comissão da Verdade. ;Os indígenas precisam participar desse processo, contando o que viveram. Porque essa impunidade vai perdurar. E o mesmo mal que a impunidade causa nas sociedades das cidades, ela causa na aldeia;, ressalta.