Encravada no coração da capital, praticamente colada ao Banco Central e à Esplanada dos Ministérios, a SQS 203 é um dos endereços mais nobres do Plano Piloto. Seu metro quadrado é orçado no mercado imobiliário em torno de R$ 8 mil. E é ali, no Bloco H, precisamente no apartamento 303, que mais um desrespeito no uso de imóveis funcionais ocorre diariamente, sob a inusitada forma de queijos, especificamente da marca Tirolez.
O apartamento de 160m; e três quartos é avaliado em cerca de R$ 1,3 milhão. Há mais de uma década, a proprietária, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, tenta, em vão, reaver o bem público. A Portaria n; 1.324, publicada no Diário Oficial de 3 de setembro de 1999, determinou ;rescindir o termo de ocupação do imóvel residencial funcional situado na SQS 203, Bl. H, apt; 303, em nome de Clineo Monteiro França Netto;.
Clineo é um dos 498 inquilinos envolvidos atualmente em casos de ocupação irregular de imóveis da União no Distrito Federal (leia para saber mais). O Ministério do Planejamento gasta, por ano, cerca de R$ 5,15 milhões apenas com a manutenção de residências funcionais na capital. Clineo se mudou para o apartamento em 29 de fevereiro de 1980, após ter sido nomeado para cargo DAS no Ministério do Trabalho, onde ficou de 1980 a 1985, ano em que deixou a pasta ; e o cargo que lhe dava direito à moradia especial. Mas ele nunca desocupou o imóvel.
O caso de Clineo extrapola os limites da ocupação irregular de uma propriedade do governo. O apartamento em questão não serve apenas de moradia para ele e sua esposa, Maria Isabel França. Ali funciona uma espécie de centro de estoque de queijos da CF Comércio de Alimentos Ltda., distribuidora no Distrito Federal da empresa Tirolez, que tem um quadro de 780 funcionários espalhados por cinco fábricas ; nas cidades mineiras de Tiros, Arapuá e Carmo do Paranaíba; em Monte Aprazível (SP); e em Caxambu do Sul (SC).
No cardápio da empresa, estão queijos especiais, defumados, light e frescos, entre outros derivados que, todos os dias, estão no centro de uma movimentação repetida há pelo menos seis anos, segundo vizinhos, na 203 Sul. Sempre pela manhã, logo cedo, antes das 8h, funcionários aparecem no Bloco H e dão início à tarefa de carregar uma das duas vans da empresa com os produtos que serão distribuídos pela cidade.
Fundada em 16 de novembro de 2000, a CF Comércio de Alimentos Ltda. tem como sede uma chácara em Santa Maria, usada para estocar parte dos laticínios. Duas vezes por semana, o local é abastecido com os queijos, que depois são enviados à 203 Sul e, de lá, despachados para padarias e supermercados de Brasília. Entre os sócios da empresa estão, além de Maria Isabel, os filhos Clécio, Cláudio e Clovis França. O último aparece no site da Tirolez como o representante da empresa no DF.
Dilapidação de patrimônio
Clineo Monteiro França Netto, 73 anos, alega que não foi informado oficialmente da possibilidade de comprar o imóvel e a União argumenta que ele não tinha cargo com vínculo empregatício, por isso não teria a opção de adquiri-lo. Apesar de declarar não ter sido avisado, ele ofereceu 11.773 cruzeiros pelo apartamento, em valores de 1992. Corrigida pelo IPCA, o índice oficial de inflação, a quantia equivaleria, hoje, a cerca de R$ 45. Se for atualizado pelo índice da poupança, o número sobe para R$ 107. A Advogacia-Geral da União (AGU) respondeu à oferta dizendo que ;realizar tal negócio é dilapidar o patrimônio da União;. Consta no parecer da AGU: ;É patente que o réu ocupou o imóvel funcional em decorrência de sua investidura na função de confiança. Com a dispensa da referida função, cessou o direito de permanência, caracterizando, assim, esbulho possessório;.
Síndico procurou a SPU
O síndico do Bloco H da 203 Sul, Charles Ramon Vieira, relatou que encaminhou ofício à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, questionando se o governo tinha conhecimento da utilização comercial do imóvel. ;Eles disseram que não sabiam de nada sobre isso e me informaram apenas que a União estava tentando reaver o apartamento. E o caso ficou por aí mesmo;, explicou. Síndico do edifício desde 2005, Vieira não soube precisar o ano em que o ofício foi enviado.