Além da miséria, os moradores da invasão da Garagem do Senado passaram por mais um drama no fim de semana. Um bebê de 5 meses morreu no domingo no barraco onde morava em condições precárias com a mãe e uma tia. A criança dormia e, segundo a Polícia Civil, somente o laudo médico definirá os motivos da morte de Pedro Henrique Pereira da Silva, filho mais novo de Jéssica Pereira dos Santos, 18 anos. Apesar de o fato ter chocado os moradores da ocupação, ontem a vida parecia seguir normalmente, a exemplo de outras áreas de extrema pobreza localizadas próximas aos centros de poder.
Pedro Henrique morreu no mesmo dia em que o Correio publicou uma reportagem sobre a situação de miséria das famílias na invasão da Garagem do Senado e em mais seis espaços de Brasília por onde circula a presidente da República, Dilma Rousseff, que prometeu erradicar a pobreza extrema nos próximos quatro anos. A reportagem revelou que até três gerações surgiram nessas invasões e acampamentos, que mantêm as condições de miséria ao longo de mais de duas décadas. As barracas de lona nas proximidades do Senado, que abrigam catadores de materiais recicláveis, são as mais antigas. Os catadores, pela renda que obtêm e pelas condições de vida, estão em situação de miséria, conforme a classificação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Das situações de pobreza extrema nos quintais do poder, apuradas na reportagem, nenhuma se compara à da invasão da Garagem do Senado. Os catadores são desarticulados, ganham pouco pela venda do papel e das latinhas de alumínio, resistem em deixar a invasão e mantêm a maioria das crianças longe da escola. São comuns famílias em que parte dos filhos está matriculada e parte trabalha catando papéis e latinhas. Também é recorrente a separação dos irmãos: alguns vão para abrigos, outros permanecem com a mãe. No domingo, a morte do bebê deu a dimensão do desamparo na invasão próxima ao Senado.
Mãe de uma menina de 2 anos, Jéssica está na invasão da Garagem do Senado há quatro anos, assim como sua mãe, Maria de Fátima Pereira dos Santos, 38. Corpos franzinos, rostos marcados pelo sol e pelos sinais de sofrimento, as duas, assim como os demais moradores da área, vivem do recolhimento de material reciclável pelas ruas de Brasília. No domingo, ela deu mamadeira para Pedro Henrique e o fez dormir, como de costume. ;Depois de mamar, fiz ele arrotar e dormir. Mas, quando fui pegá-lo para tomar banho, notei que seu corpo estava frio;, conta Jéssica. ;Primeiro foi o pezinho, que achei muito pálido, e depois notei que era todo o corpo.;
Desespero
A família e os vizinhos ainda chamaram o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas já era tarde. O bebê estava morto e a mãe, em desespero. Segundo Jéssica e Maria de Fátima, a criança estava bastante gripada, o que pode ter sido um dos motivos da morte, ocorrida por volta das 10h de domingo, horário em que as crianças da Garagem do Senado disputam os primeiros jogos de futebol no gramado em frente às moradias, única atividade de recreação dos jovens.
Jéssica estudou somente até a quarta série e logo cedo começou trabalhar com a mãe no recolhimento de recicláveis. Aos 16 anos, teve sua primeira filha e, no ano passado, nasceu Pedro Henrique. Depois da morte do menino, Jéssica foi para a casa de uma tia na Vila Telebrasília. À tarde, voltou ao barraco, mas não teve coragem de entrar. Ainda não tinha visto o corpo do filho depois de ter sido necropsiado no Instituto Médico Legal (IML) e, no início da noite, foi com a mãe procurar ajuda no Serviço de Assistência Social do Governo do Distrito Federal (GDF), já que não tinha dinheiro para comprar o caixão e custear o funeral do filho.
;Quando morre um filho, a gente perde uma parte da gente;, lamentava Jéssica, que costuma arrecadar até R$ 400 mensais com a venda de papel, garrafas pet e outros recicláveis. Dinheiro que não dá para muita coisa para quem tem uma grande família, como a de Rosival Albino dos Santos, 73 anos, também trabalhando na invasão da Garagem do Senado. Apesar de estar perto do poder, os moradores não estão longe do pobreza. ;Não ganho nada do governo;, diz Rosival. ;Nem cesta básica eu consegui;, acrescenta ele, que é morador de um dos barracos que fica a 3,3km do Palácio do Planalto e a seis minutos do Congresso, num percurso feito de carro.
Fracassos sucessivos
Mesmo com repasses de R$ 306 milhões da União num único ano e a existência há quatro anos de uma força-tarefa para a retirada de famílias de áreas públicas, o Governo do Distrito Federal (GDF) fracassa sucessivamente nas iniciativas de eliminar a miséria nos pontos próximos ao poder. Somente no ano passado, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) repassou quase R$ 306 milhões ao GDF para o financiamento de programas como o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social (BPC) e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), além de recursos para os Centros de Referência de Assistência Social (Cras e Creas), voltados para a população extremamente pobre, em situação de vulnerabilidade. Mesmo assim, antigas invasões nas proximidades dos principais centros de decisão política continuam abrigando dezenas de famílias, como o Correio mostrou no domingo.
O GDF tentou resolver a situação por meio de decreto, em janeiro de 2007, quando foi criada uma força-tarefa para eliminar ocupações ilegais de áreas do GDF e outras de proteção ambiental. A questão, na visão do governo naquele ano, era de polícia: o secretário de Segurança Pública foi nomeado como coordenador-geral da força-tarefa.
Vários órgãos integram o grupo, entre eles a Secretaria de Desenvolvimento Social, responsável por cadastrar as famílias para que elas possam receber os benefícios do governo federal. Um novo decreto, de abril do ano passado, alterou a gerência da força-tarefa: o coordenador operacional passou a ser o subsecretário de Defesa do Solo e da Água. Esse é o órgão mais temido nas invasões e acampamentos espalhados em áreas nobres de Brasília, em especial na invasão da Garagem do Senado. Os moradores relatam abusos e reclamam da completa falta de assistência após a retirada do local. Quase todos acabam voltando para as áreas invadidas.
O modelo adotado é criticado pela atual subsecretária de Assistência Social do GDF, Ana Lígia Gomes, que assumiu o posto no último dia 5. ;Não se promove a retirada de famílias por uma decisão de decreto. Se não forem dadas condições de sobrevivência, todo mundo volta.;
Segundo Ana Lígia, um projeto de retirada das famílias será apresentado pelo governo de Agnelo Queiroz, com ;condições de sobrevivência e de moradia;. ;A força-tarefa vai continuar, com melhorias. É preciso cuidar e proteger essas famílias, que estão com as vidas desumanas.; Hoje, o GDF não tem vagas suficientes nos abrigos. Cras e Creas estão endividados e em condições precárias, apesar dos repasses da União. O reflexo está no aumento da quantidade de invasões e de acampamentos próximos ao poder.
O grupo já visitou diversas vezes a invasão da Garagem do Senado. Qualquer catador de papel que vive sob uma barraca de lona no local reclama do SIV-Solo, órgão que deu origem à Subsecretaria de Defesa do Solo e da Água (Sudesa), responsável por gerenciar a força-tarefa existente. Os moradores, apesar da fiscalização, sempre voltam ao local por causa da proximidade à Esplanada dos Ministérios, onde coletam material reciclável. (VS e EL)