Era uma quinta-feira. A servidora Maria Francisca Soares, 53 anos, levantou cedo, tomou banho e fez café em sua residência no Setor Leste do Gama. Às 7h em ponto, abriu a janela do quarto e olhou para fora. Já estavam no seu quintal um delegado e mais dois policiais vestidos de preto, com armas de cano longo nas mãos. Um dos policiais se aproximou com um revólver apontado para ela, perguntou pelo seu nome e ordenou: ;Abra a porta;. Ela conta que não sabia o que estava acontecendo. Mas logo entendeu. Começava ali um pesadelo que já dura cinco anos.
Maria teve a casa revirada, foi presa, algemada, fotografada pela imprensa, transportada em camburão e depois levada para Macapá (AP). Era suspeita de fazer parte de uma quadrilha que fraudou o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) naquele estado. Tratava-se da Operação Pororoca, que, em novembro de 2004, prendeu 28 empresários e políticos acusados de montar uma quadrilha para fraudar licitações para 17 grandes obras realizadas no Amapá, no valor de R$ 103 milhões. Quatro anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a servidora agiu dentro da norma legal. Era tarde. Sua carreira estava destruída e a vida, arruinada.
Os policiais informaram, naquela manhã de novembro, que iriam fazer uma busca e apreensão. ;Busca e apreensão de quê?;, perguntou Maria. Eles responderam que procuravam dinheiro, joias e dólares. Ela disse que não conhecia dólar. Perguntaram se ela tinha carro, moto, outra casa. Em seguida, reviraram a residência, os armários, jogaram tudo no chão. Depois, informaram que tinham um mandado de prisão para ela. ;Me prender por causa de quê?;, quis saber. Foi colocada num camburão, na presença dos vizinhos, no Setor Leste do Gama. ;Só fiquei sabendo que tinha sido presa na hora do jornal do meio-dia, que passou na televisão.; Ao chegar ao Instituto de Medicina Legal, ela e os integrantes da quadrilha foram recebidos por populares, com xingamentos. Tudo filmado pela TV.
Maria foi levada para Macapá de avião no dia seguinte. Lá, prestou depoimento. Foi libertada na segunda-feira. ;Não foi uma libertação. Eles jogaram a gente na rua. Eu não tinha um centavo. Só a carteira de identidade.; Ela retornou à Superintendência da Polícia Federal com o advogado que a acompanhou nos depoimentos. Perguntou como voltaria a Brasília. A delegada de plantão teria respondido: ;Se vira;. O advogado fez uma vaquinha com colegas e comprou a sua passagem.
Suspeita
A Polícia Federal investigava fraudes em licitações no Amapá. Escutas telefônicas feitas entre outubro e novembro de 2003 revelaram que o empreiteiro Luiz Eduardo Corrêa, o prefeito de Santana (AP) na época e assessores parlamentares de Brasília estariam negociando a retirada da inadimplência do município do Siafi (sistema informatizado que registra os gastos do governo federal). A quadrilha contaria com a ajuda de dois funcionários do Ministério da Educação. A Secretaria Federal de Controle enviou dados oficiais à PF afirmando que houve lançamentos indevidos no Siafi e que os responsáveis seriam dois servidores, um deles Maria Francisca. Havia um terceiro nome, mas esse foi ignorado pela investigação. O delegado Tardelli Boaventura concluiu que teria havido corrupção ativa e passiva, tráfico de influência e formação de quadrilha, com ;fortes indícios; de envolvimento de Maria Francisca.
Após a prisão, um processo administrativo interno resultou no afastamento de Maria do serviço por 30 dias. Depois, por mais 90 dias. Ela apresentou a sua versão para o fato no processo. Disse que foi procurada por um assessor parlamentar no FNDE. Ele queria informações sobre a prefeitura de Santana. Ela constatou que o Siafi informava falta de prestação de contas. Informou ao assessor que bastava a apresentação da prestação de contas para a inadimplência ser baixada. Era o que previa a Instrução Normativa n; 01/97 da Secretaria do Tesouro Nacional. Quando a prestação foi apresentada, ela deu baixa na inadimplência. Diante da punição, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que não quis analisar o caso. Ela foi ao STF, que mandou anular a pena de suspensão.
O ministro-relator, Marco Aurélio Mello, concluiu que a servidora agiu de forma legal. O ministro Carlos Alberto Menezes Direito acompanhou o voto, afirmando que ;a referida instrução revela que não há nenhuma incompatibilidade entre a norma administrativa e o comportamento da impetrante. A instrução determina que seja dada baixa na prestação de conta quando esta é apresentada. Depois, somente se não aprovada a prestação de contas é que deve ser feita nova inscrição para constar a pendência;.
Pesadelo sem fim
A volta ao trabalho foi apenas a sequência do pesadelo. ;Passei tudo quanto foi humilhação. Não me davam senha, não me davam serviço. Eu sentia os olhos deles me queimando. Passavam por mim e me viravam a cara, me chamavam de lobista. Diziam: ;É aquela que foi presa por corrupção;.; Depois, veio a depressão, licenças atrás de licenças, a aneroxia, os desmaios. ;Não conseguia nem levantar para ir ao banheiro sozinha;, lembra.
Pressionada no trabalho, pediu a aposentadoria. ;Foi por causa das humilhações, das perseguições, do abandono.; A decisão do STF, em março de 2008, foi um alívio. ;Aquilo me livrou de tudo, disse que eu não tinha culpa. Eu devo muito ao ministro. Ele entendeu a minha história. Me senti, pelo menos em parte, aliviada. Mas, lá no serviço, não adiantou nada. Eu continuava a mesma pessoa: eu fui presa, julgada, condenada e maltratada. Aquelas algemas maltratam a gente;, conta, sem conter as lágrimas.
Ela apresentou um pedido de indenização à União, no valor de R$ 600 mil. Mas comenta: ;Nem todo o dinheiro do Brasil paga o que eu passei. Não vai compensar nada. Tenho vergonha de sair na rua e as pessoas dizerem que sou corrupta. O único lugar em que vou é à igreja. Sofro as consequência até hoje;. (LV)