O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart, diz que está preparado para defender a legalidade dos repasses de recursos a entidades privadas qua apoiam a reforma agrária na Comissão Parlamentar de Inquérito Mista (CPMI) criada para apurar possíveis irregularidades nesse tipo de operação.
"Nossa política é pública, é transparente, a sociedade conhece, pela execução orçamentária do Siafi [Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal], pela fiscalização do TCU [Tribunal de Contas da União]", disse.
Com seis anos e três meses à frente do Incra ; o mais antigo no cargo ; e o feito de ter assentado 529,4 mil famílais em 42,3 milhões de hectares no atual governo, Rolf Hackbart afirma que gostaria de aproveitar a oportunidade para defender um novo modelo agrícola sustentável para o país, a partir da experiência dos assentamentos da reforma agrária.
"Se o planeta e o Brasil continuarem com o atual modo de produção e de consumo, o planeta explode. E olha que eu não sou catastrofista, não vai explodir amanhã. Não é isso ; a contaminação pelos agrotóxicos, a monocultura, a concentração da propriedade da terra tornaram esse modelo insustentável", ressalta Hackbart, em entrevista à Agência Brasil. Para ele, a solução para a produção de alimentos "limpos", livres de agrotóxicos, é a desconcentração da propriedade rural e a criação de cadeias produtivas que respeitem o bioma de cada região do país.
Com um orçamento de R$ 4,6 bilhões para ser executado em 2010, três vezes mais do que quando assumiu o Incra em 2003, Hackbart quer dar mais atenção à melhoria de qualidade e rentabilidade dos assentamentos, sempre respeitando o meio ambiente. O Incra tem hoje 500 técnicos que trabalham com manejo sustentável e licenciamento ambiental.
Também em 2010, o Incra vai fiscalizar milhares de propriedades rurais com área superior a 15 módulos rurais para averiguar se estão respeitando o meio ambiente, se cumprem com os níveis de produtividade e as obrigações trabalhistas. Devem ser vistoriadas mais de 7 milhões de áreas agricultáveis das diversas regiões do país. Quem estiver fora da lei poderá ter suas terras desapropriadas.
A seguir a integra da entrevista:
João Pedro Stédile, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, diz que se o governo tivesse feito a reforma agrária, o MST não teria necessidade de existir.
Rolf Hackbart: O governo Lula criou 3,139 mil assentamentos de 2003 para cá e destinou 42,3 milhões de hectares de terras para a reforma agrária. O orçamento do Incra passou de R$ 1, 5 bilhão em 2003 para R$ 4, 6 bilhões em 2009. Nós incluímos no governo Lula 529,481 mil famílias no programa da reforma agrária. Isso representa, na minha opinião, a prioridade para a reforma agrária.
Então, a crítica não é justa?
Hackbart: Não acho justa, até porque eu entendo que a existência do MST e de outros movimentos sociais vai além do acesso à terra. Não é só acessar a terra. Fazer reforma agrária é obter terras, assentar as famílias, criar linhas de crédito e produzir. Os movimentos sociais se organizam por crédito, assistência técnica, educação e moradia. Nos próprios assentamentos onde o MST tem influência, a principal pauta é a liberação do recurso para construção e recuperação de casas.
Como o senhor se sente executando um programa como esse, que é contestado de um lado por quem representa os beneficiados e de outro pelo latifúndio?
Hackbart: Eu me sinto tranquilo operando dentro dessas contradições, lutando por um país mais justo, para mudar o modelo agrícola. O Incra, na minha gestão, reflete a correlação de forças da sociedade, que se organiza, que pressiona no Parlamento, que pressiona na mídia. Não existe uma visão de que a reforma agrária está pronta, não. A propriedade e o uso da terra no Brasil ainda são muito concentrados. O último senso agropecuário do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] vai mostrar que a desigualdade não aumentou, o que é um avanço, embora ainda haja uma concentração da propriedade enorme. Uma sociedade não se desenvolve com concentração de renda, nesse caso, do meio de produção terra, que é um meio de produção finito. O nosso grande desafio continua sendo o de desconcentrar a propriedade da terra para um conceito moderno de reforma agrária.
E como se pode obter novas áreas?
Hackbart: Só podemos obter novas áreas avaliando se as propriedades cumprem a função social. Nós vistoriamos por ano, em média, 7 milhões de hectares de terra, o que não quer dizer que todos vão ser obtidos para a reforma agrária. São vistorias para ver se esses imóveis cumprem ou não a função social: se produzem, se respeitam a legislação ambiental e trabalhista.
E qual é o conceito moderno de reforma agrária?
Hackbart: O conceito moderno é o que vem do Estatuto da Terra, que resgata a pauta de movimentos sociais e estudiosos da academia, que parte do raciocínio por bioma. Deve, a partir daquele bioma, definir como se dará o destino das terras. Para que tipo de produção? Para que tipo de cultura? Uma atividade produtiva que proteja o meio ambiente e gere renda. E mais, eu entendo que um dia o país vai avançar, quando debater o limite do tamanho de propriedade rural. Não pode é não ter limite.
Qual deveria ser o limite de área de propriedade rural?
Hackbart: Isso ninguém sabe. Acho que isso tem que ser o resultado do debate da sociedade, e eu acho que é por bioma, ainda gosto do velho conceito de bacia hidrográfica, mas hoje é moderno chamar de bioma, é mais atual. Nesse bioma, qual é o limite do tamanho de propriedade? A sociedade tem que dizer que aqui tem um limite. A correlação de forças da sociedade hoje no Brasil não permite esse debate.
O senhor está dizendo que o andamento da reforma agrária, na verdade, é resultante de uma correlação de forças da sociedade.
Hackbart: Também é resultado da correlação de forças e de uma decisão política do governo, evidentemente. Também é, e eu sinto isso muito na pele, resultado da capacidade operacional do estado. Nós temos cerca de 3.300 assentamentos onde vivem 1 milhão de famílias em 80 milhões de hectares. O Estado presta assistência técnica, faz estrada, escola, leva luz, dá educação. Não é só o Incra ; são os prefeitos, os governadores. A União precisa de mais estrutura, mais equipamento, mais técnico qualificado e mais parceria. Cobrar tudo do Incra é impossível, isso que nós temos que rever.
E do ponto de vista da eficácia e da eficiência, hoje consegue-se fazer um assentamento com custo menor do que em 2003?
Hackbart: Esse é o tipo de raciocínio de que eu gosto de tratar, no seguinte sentido: É um investimento. Caro é ter criança na esquina pedindo esmola, caro é construir presídio, caro é a fome, caro é não ter cidadania. Hoje, em média, no Brasil para assentar uma família, [o custo] fica entre R$ 50 mil e R$ 60 mil. Uma família que gera, segundo o IBGE, três empregos diretos. No Nordeste é mais barato, no Centro-Oeste é mais caro. Isso é investimento porque nós estamos tratando aqui de problemas estruturais e não de conjunturais. Vai ter acesso à terra ou não, vai ter a casa ou não, vai ter água ou não, vai ter energia ou não. E o grande desafio que eu vejo na sociedade brasileira é enfrentar um novo modo de produção na agricultura.
A reforma agrária está fora desse modelo?
Hackbart: Não, a reforma agrária está dentro do novo modo de produção da agricultura. É que as pessoas ainda veem a reforma agrária como pegar um pedaço de terra e dividir, partilhar. Não. O novo modo de produção na agricultura ; e Copenhague vai mostrar isso agora, já está mostrando ; que se o planeta e o Brasil continuarem com o atual modo de produção e de consumo, o planeta explode. E olha que eu não sou catastrofista, não vai explodir amanhã. Não é isso ; a contaminação pelos agrotóxicos, a monocultura, a concentração da propriedade da terra, a terra ainda como reserva de valor tornaram esse modelo insustentável.
Há críticas segundo as quais os assentamentos não respeitam o meio ambiente. O Incra cobra dos assentados um compromisso com a preservação?
Hackbart: A proteção do meio ambiente é prioridade da reforma agrária. Todo assentamento reflete a realidade econômica, social e ambiental daquela região. O que quero dizer? Tem problema ambiental nos assentamentos? Claro que tem. Imagina se no norte de Mato Grosso e no sul do Pará não tem. Onde é o arco do desmatamento, então tem. Em 2004, criamos a Coordenação de Meio Ambiente no Incra. Hoje, há mais de 500 técnicos trabalhando com manejo sustentável e licenciamento ambiental. Nós entramos com 4, 193 mil pedidos de licenciamento dos assentamentos. Temos exemplos de produção, de preservação ambiental fantásticos do Brasil inteiro, de assentamentos que produzem e protegem o meio ambiente. Acho que isso é um indicador de que um dia a sociedade começará a observar que dá para fazer diferente.
Que tipo de coisas?
Hackbart: Manacapuru, por exemplo, em Manaus, tem 1.600 famílias em dois assentamentos com proteção ambiental, com reserva ambiental, com a APT [Área de Proteção Permanente] que exportam, vendem filé de peixe, exportam açaí, protegem as águas. Um assentamento no sul da Bahia exporta cacau orgânico, fora o que é para consumo. Qual é nosso desafio nesse caso do cacau? Ele vai em contêineres. E ainda o chocolate na Alemanha, na Bélgica, e a gente compra o chocolate aqui. O que devia ter era a indústria aqui, agregar valor aqui, esse é nosso grande desafio. E assim há vários exemplos no país inteiro.
Essa visão ecológica de sustentabilidade dos assentamentos pode servir de modelo para a agricultura brasileira?
Hackbart: Ou o desenvolvimento sustentável acontece na prática, ou o modo de produção e de consumo ; principalmente esse modo de produção americanizado e de consumo americanizado ; vai inviabilizar grandes regiões do país. Quer um exemplo? Desertificação dos solos. Degradação e desertificação: Minas e Rio Grande do Sul, norte de Mato Grosso. Uma das razões, não a única, é a monocultura e o veneno. O desenvolvimento sustentável do ponto de vista econômico, ambiental e social tem que ser perseguido. Aí, nós temos que raciocinar o Brasil por bioma. Como produzir aquele bioma, o que produzir que gere renda, que não seja um aquário, uma ilha isolada, que se integre na economia, que proteja o meio ambiente e que seja socialmente justo? O Brasil é um dos raros países que têm possibilidade de promover desenvolvimento rural sustentável em cidades menores, em regiões menores. E já há pesquisas em universidades mostrando que os jovens das periferias aceitam, gostam ou gostariam muito de voltar para o meio rural. Claro que com condições.