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Politica

Empresa de relator da PEC impede acesso a rio em Belém

Belém ; Nos corredores do Congresso, o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) passa despercebido. A estatura baixa e atuação discreta do suplente em exercício, no entanto, nem de longe lembra o poder e a influência que o parlamentar exerce no estado de origem, mais especificamente na capital paraense. Ali, o Correio encontrou provas de que a autoridade do senador, mesmo quando ainda era conhecido apenas como dono de uma construtora, foi capaz até de definir a geografia de uma rua na cidade. No bairro do Telégrafo, um muro erguido há cerca de 10 anos pela empresa Engeplan, fundada pelo parlamentar, impede o acesso da Travessa Manoel Evaristo ao rio. A área está situada em terreno de marinha e é administrada pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU).

Os vizinhos, a maioria de baixa renda, dizem que viram o muro da empresa ser colocado na rua passivamente porque ninguém pretendia criar caso com integrantes da elite local. A reportagem gravou as declarações de seis moradores do bairro. Em comum, as dúvidas sobre o futuro do acesso à Baía do Guajará e o temor de desagradar ao hoje senador Flexa Ribeiro com afirmações contrárias ao muro. ;A gente nunca reclamou porque é a empresa do homem. Ninguém por aqui quer briga com ele, muito menos depois que ele virou senador. Pelo contrário, precisamos é de calçamento;, comentou um vizinho, que vive na região há quase 20 anos e se identificou de forma desconfiada apenas como José. ;Sobrenome, não, que isso não é bom sair falando;, disse.

Tão impressionante quanto a passividade com que os moradores da região encaram o fechamento da rua é a falta de ações dos órgãos fiscalizadores para a liberação da área. A SPU no estado apenas conversou com o atual dono da empresa, Antonio Fabiano Coelho, e não chegou a entrar com processos judiciais. ;Nós conversamos e ele disse que quando quisermos ele poderá retirar o muro de lá. Ele demonstrou boa vontade;, comentou o gerente regional do órgão no Pará, Neuton Miranda. A conversa ocorreu há dois anos e a área, que deveria ser a continuidade da rua, ainda está bloqueada.

O local invadido pelo grupo empresarial do senador está localizado em terreno de marinha e é objeto de uma discussão entre a União e a prefeitura sobre sua propriedade. Mas, enquanto discutem a jurisdição da rua fechada pelo muro de 20 metros, o grupo empresarial ligado ao parlamentar faz planos mais ambiciosos. Ao lado da área invadida, está prevista a construção, a partir de agosto, de um prédio de 19 andares, cuja cobertura será de Flexa Ribeiro (leia mais na página 4).

Lobby
A relação do senador com terrenos de marinha não se limita à ocupação de uma área pela empresa que ele fundou e tampouco aos preparativos para que ele se torne dono da cobertura no luxuoso prédio que será construído em terras da União. Coincidentemente, Flexa Ribeiro tornou-se relator de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que prevê o fim da cobrança das taxas de ocupação de terrenos de marinha. Deu um voto favorável à matéria, que está pronta para ir ao plenário.

Ribeiro, no entanto, não é o único a legislar em causa própria. Cerca de 20 projetos que acabam com o pagamento dessas taxas ; e tornam os atuais ocupantes donos das áreas da União ; foram apresentados por parlamentares que anualmente pagam o imposto da ocupação. Poucos deles constam na lista da SPU como os responsáveis por esses imóveis, que geralmente estão em nome de familiares.

A maioria, no entanto, admite a condição de ocupante, mas nega que faça lobby em causa própria. ;Pode até ficar parecendo que seja isso. Mas não tem nada a ver. Moro em um apartamento à beira-mar e minha esposa paga essa taxa. Mas isso não tira o mérito dessa luta contra o abuso que é essa cobrança. Em Pernambuco, pelo menos 70 mil famílias estão nessa condição. É injusto e extorsivo. Uma cobrança sem critérios que não lhe dá nenhum serviço em troca;, comenta o deputado José Chaves (PT-PE), presidente da subcomissão de terrenos de marinha da Câmara.

Para outro integrante da subcomissão, José Carlos Machado (DEM-SE), o fim da cobrança é uma causa de muitos brasileiros justificada pela antiguidade da norma e pela falta de critérios da União para realizar as cobranças. ;Temos que trabalhar por isso. Um ocupante desse tipo de área como eu já deve ter pago ao longo dos anos o preço de uns 20 terrenos. Não há critérios e a lei é antiga demais para ainda estar valendo;, diz o parlamentar, que possui três terrenos em área da Marinha.

Outros parlamentares do grupo em defesa do fim da cobrança se irritam quando perguntados se fazem lobby para beneficiar a si mesmos. ;Vocês acham que não há argumentos para acabar com essa taxa porque não pagam. É um absurdo e estamos mesmo trabalhando para acabar com ela e beneficiar muitos brasileiros;, diz o senador Renato Casagrande (PSB-ES). ;Só vou falar quando você disser quem foi que disse que eu tenho imóvel em área de marinha. Quero o nome do funcionário. Senão, não há entrevista;, esbravejou Almeida Lima (PMDB-SE), autor da PEC relatada por Flexa Ribeiro.

Para saber mais

Legislação de 1831

São considerados terrenos de marinha os situados até 33 metros da linha do preamar médio do ano de 1831, ;na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;. A definição foi dada pelo Decreto-Lei n; 9.760/1946.

O principal objetivo para delimitar as áreas como de marinha era a segurança das cidades e o embarque e desembarque de cargas. Com o passar do tempo, no entanto, a própria geografia das regiões do país encarregou-se de modificar a função e o uso dessas áreas, que hoje são ocupadas em sua maioria por construções urbanas.

Diante das mudanças, o Poder Público começou a liberar partes desses lotes para ocupação, mas estabeleceu a cobrança de taxas. Dessa forma, ficou determinado que as áreas cedidas a particulares seriam objeto do chamado ;foro;, calculado em 0,6% do valor do domínio pleno do imóvel.

Caso esse particular aliene o imóvel localizado em terreno de marinha ou decida repassá-lo para outra pessoa, outra taxa deve ser paga: o polêmico laudêmio, que corresponde a 5% do valor do domínio pleno do imóvel.

Se o terreno de marinha for apenas ocupado pelo particular, o imposto cobrado pela Secretaria de Patrimônio da União será a ;taxa de ocupação;, calculada com alíquotas de 2% ou 5% sobre o valor do domínio pleno do terreno.

Por conta do excesso de taxas e do fato de a base determinante para definir o que é área de marinha ser a maré de 1831, inúmeros processos judiciais estão sendo apresentados em todo país em favor do fim da cobrança. A SPU, no entanto, diz que não pretende ceder e que apenas cumpre a lei.