Jornal Correio Braziliense

Politica

Assentados não têm interesse no título de propriedade da terra que ocupam para não perderem repasses federais

Uma reivindicação que poderia parecer óbvia no processo de reforma agrária não existe na prática. Os assentados não têm interesse em assegurar o título de propriedade da terra que ocupam. Isso se explica por motivos bem práticos. Primeiro, porque, ao receber o título de propriedade, eles perderiam o direito a qualquer repasse de recursos do governo federal. A ajuda de custo para implantação, habitação e fomento pode chegar a R$ 35 mil por lote. Se não pagassem financiamentos dos bancos, teriam que honrar a dívida com a própria terra. Talvez isso explique por que apenas 106 das 12.480 famílias assentadas no Distrito Federal e no Entorno têm título de propriedade da terra. Os ;sem-terra; reclamam muito do governo federal, mas parecem querer ficar eternamente sob a sua proteção. [SAIBAMAIS] Gaspar Martins, um dos coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) no DF e Entorno, explica de forma direta por que não interessa ao movimento titular as terras. ;Depois que passou o título, acabou, não existe mais nenhum recurso. O governo sai fora de todo o processo. Aí, é tratado de proprietário para proprietário. O governo não investe mais.; Ele reconhece que haveria o risco de perda da terra para pagar financiamentos. ;Por exemplo, no caso dos assentados que estão endividados hoje, a terra poderia ficar penhorada para pagar a dívida do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Então, o Incra perde o domínio da terra, e o agricultor pode perder a terra para pagar dívida.; A mesma posição é defendida pelo presidente da Associação de Miniprodutores de São Vicente, Aldrey Galvão. O assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Flores de Goiás existe há mais de 10 anos, mas apenas 8 dos 583 lotes foram titulados. Ele afirma que os assentados não querem o título da terra. ;Na situação em que está hoje um assentado, se pegar o título da terra, o que ele vai fazer? Vai penhorar no Banco do Brasil e perder o direito.; Ele relata outra consequência da titulação: ;Não tem mais recurso do governo federal. Você não recebe mais dinheiro de maneira nenhuma. O governo federal tira a proteção de cima e acabou. ;Não interessa; Martins afirma que, sem ter o título da terra, o assentado pode negociar melhor suas dívidas. ;Pode renegociar, o banco não pode tomar porque a terra não é nossa, é do Incra, do próprio governo.; Ele diz que realmente não interessa a titulação: ;Não é, não é interessante. O interessante para nós é o título da concessão de uso da terra. Em vários assentamentos, já estamos fazendo a proposta para o Incra de titulação coletiva;. E explica as vantagens dessa modalidade: ;Na concessão do uso da terra, se eu morro hoje, fica com um filho, com um irmão, vai passando de geração para geração. Se tiver o título, a pessoa já pode vender automaticamente. Incentiva muito mais a venda de lotes da reforma agrária;. O líder do MST informa que, no início do governo Lula, o movimento reivindicou que o presidente publicasse uma portaria para garantir concessão do uso da terra. ;Mas acabou chegando o final (do governo) e isso não aconteceu. Em muitos estados, nós conseguimos trabalhar com a concessão de uso. Mas tem vários estados que ainda não se adaptaram a esse sistema.; No assentamento de Martins, o Menino Deus, em Unaí (MG), nenhum dos 30 lotes está titulado. Ele argumenta que o atraso na implantação de infraestrutura nos assentamentos é outro motivo para que o movimento evite a titulação. ;Eu, por exemplo, estou no assentamento há 12 anos. Dentro da lógica, já poderiam ter titulado. Mas o governo não emprestou nenhuma parte da infraestrutura que era por conta do Incra. Agora, se emancipar e cada um tiver o título, aí que não tem mesmo. Aí, o governo não tem a obrigação de aplicar políticas públicas dentro do assentamento.; Galvão afirma que a titulação seria uma boa aternativa se o Incra ajudasse a comunidade a começar a produzir. ;Depois que produzir, estando legal com as contas no banco, aí seria bom, porque a gente começaria a trabalhar e a desenvolver. Aí, a titulação pode ser viável para qualquer assentamento. Mas, no jeito que está a situação do nosso assentamento, a titulação imediatamente não é viável.; Projeto falido O projeto de assentamento São Vicente foi implantado há 12 anos. Os 539 lotes iniciais deveriam receber irrigação, com água captada da barragem do Macacão ; uma das 10 previstas no projeto de irrigação Flores de Goiás. Mas a irrigação não chegou até hoje. Os assentados estão endividados e não recebem novos recursos para plantar. Só produz quem trouxe dinheiro de fora para investir. <--
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