Pelo menos 200 quilos das sobras da burocracia são descarregados todos os dias no lixão vizinho ao Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), endereço provisório da Presidência da República. O depósito fica a 50 passos da grade que delimita o Palácio do Jaburu, sede oficial da Vice-Presidência, ou a dois minutos de carro do Palácio da Alvorada, onde mora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de tão próximas, as famílias que colocam a mão nos restos do que a Esplanada produz diariamente para sobreviver são invisíveis aos olhos do poder público.
[SAIBAMAIS]
O rastro de papel deixado pelas carroças que têm como destino o lixão do CCBB segue trilha paralela ao asfalto por onde passa o comboio presidencial. O cerrado, como é chamado o lugar pelos catadores, é o endereço comercial de oito famílias que tiram o sustento organizando os detritos que vêm dos ministérios, seus anexos, Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal. Uma parte do grupo que trabalha com o material mora em barracos de lona dispostos a poucos metros das pilhas de sujeira.
O tratamento de parte do lixo produzido na Esplanada é artesanal e não segue nenhuma precaução de higiene. O trabalho é assim dividido: os homens, alguns com menos de 18 anos, ficam responsáveis pela coleta do lixo dos contêineres dispostos em frente aos órgãos da Esplanada. Eles fazem o percurso duas vezes ao dia. Uma no fimda manhã e a outra por volta das 16h, horário em que as caçambas estão cheias. Os catadores mais novos guiam carroças e os mais velhos dirigem um triciclo doado por uma associação de trabalhadores do setor.
Acostumados a encontrar lixo seco com molhado, mesmo nos casos dos ministérios que deveriam dar o exemplo, como o do Meio Ambiente, segundo revelou reportagem publicada na edição de ontem do Correio, os catadores fazem uma pré-seleção do material desprezado. Dão preferência aos sacos mais leves e menos úmidos, sinal da ausência de restos de comida. A prática, no entanto, não evita a mistura de garrafas, latas, vidro e objetos de toda sorte embalados nos pacotes pretos deixados nos contêineres.
O material coletado nas caçambas da Esplanada segue para o cerrado. Lá, começa o trabalho das mulheres, rodeadas de filhos de todas as idades. São elas que separam os papéis, dos jornais, das revistas, do vidro, do plástico, das garrafas, do papel higiênico, dos restos de comida, e, eventualmente, de roupas ou objetos descartados mesmo que ainda pareçam "novinhos" para quem tem quase nada. Essa é a rotina de Maria Amélia, matriarca de uma das famílias que vivem do lixo.
Em menos de um minuto, as mãos ligeiras da mulher, catadora há 16 anos, esvaziam um saco preto cheio de restos. Com o braço esquerdo, Maria Amélia, de 60 anos, que não lê nem escreve, separa os relatórios, despachos, ordens de pagamento, extratos bancários, e os despeja em um cercado com 30 metros quadrados a sua frente. Com o outro braço - defeituoso em razão de fratura não medicada -, ela tira os copinhos de café, os sacos plásticos, as cascas de banana, o bagaço da laranja, as latinhas de refrigerante, e metros de papel higiênico misturados à pilha de documentos descartados. Não usa luvas nem máscara.
Além disso, acostumadas a tirar o sustento das sobras, as crianças não são detidas quando encontram restos de refrigerante ou sacos de pipoca em meio aos dejetos que atraem ratos, baratas e insetos para a região. "Se o pacote estiver fechado, que problema tem?", diz L., que segurava um pacote de pipoca doce na mão, reservado do lixo. Enquanto isso, Carlos, de 6 anos, e J., de 7, corriam segurando duas garrafas com sobras de refrigerante encontradas no lixo dos ministérios. Foi o lanche dos vizinhos invisíveis da Esplanada tornando atual a poesia Bicho(1) de Manuel Bandeira, publicada em 1947.
1-Bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus,
era um homem.
Manuel Bandeira