Jornal Correio Braziliense

Politica

Fichas do SNI e depoimentos ajudam a montar relatório sobre a guerrilha do Araguaia

Técnicos do Arquivo Nacional usam fichas do antigo SNI e depoimentos de guerrilheiros e militares para montar um detalhado relatório sobre o que aconteceu na região do Araguaia nos anos 1970

O governo tem em mãos um documento que pode tirar muitas dúvidas ainda existentes sobre a Guerrilha do Araguaia. É um dossiê, com 21,3 mil páginas, feito a partir de fichas que estavam nos acervos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI). O trabalho, considerado um dos mais completos até agora, foi concluído no ano passado por técnicos do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro e em Brasília, e encaminhado ao Ministério da Defesa e à Advocacia-Geral da União (AGU). Os papéis serão entregues pelo Estado brasileiro à Justiça Federal, que determinou a abertura do sigilo das operações militares no Bico do Papagaio. O governo ainda deve dar uma resposta à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, encerrado um dos mais misteriosos casos da história do país. O Dossiê da Guerrilha do Araguaia não relata fatos referentes às pessoas que estiveram no campo de batalha e sobreviveram, mas apenas às que morreram. O Arquivo Nacional cruzou informações de guerrilheiros e militares que combateram e comandaram as operações das Forças Armadas na região, além dos próprios relatórios das ações realizadas a partir de 12 de abril de 1972. O documento não se restringiu aos mortos conhecidos até agora, mas foi além, identificando outros possíveis casos de desaparecidos no mais polêmico confronto entre militares e civis no Brasil do século passado. Os técnicos vasculharam não apenas os documentos sobre o assunto, mas se debruçaram em relatórios do SNI sobre movimentações estudantis e sociais da década de 1970. Pelos relatórios oficiais do Ministério da Justiça, oficialmente 61 pessoas morreram no Bico do Papagaio (na divisa do Pará, Tocantins e Maranhão), onde ocorreram os combates. O primeiro levantamento feito pelo Arquivo Nacional foi realizado em torno de 22 nomes relacionados na ação judicial impetrada por familiares de mortos e desaparecidos. O trabalho rendeu 234 dossiês individuais de pessoas, 56 coletivos e 136 só sobre Mauricio Grabois, o líder dos guerrilheiros. Ao fazer a pesquisa temática, os técnicos encontraram 28 dossiês relacionados às operações militares. A partir daí, foram levantados 31 documentos relacionados aos mortos e desaparecidos, além de 203 fichas individuais e 38 coletivas envolvendo os participantes da Guerrilha do Araguaia, totalizando 241 dossiês com informações sobre o tema. Ao todo, foram gerados quase 700 lotes de papéis que podem revelar fatos até então desconhecidos pelos combatentes, de um lado e de outro. Sigilo Há seis anos, a juíza Solange Salgado, da 1ª Vara Federal do Distrito Federal, determinou a quebra de sigilo das operações militares no Bico do Papagaio, depois de 30 anos da Guerrilha do Araguaia. Era um dos primeiros passos dados no processo movido por 22 familiares de mortos e desaparecidos, que também recorreram à Corte Interamericana dos Direitos Humanos. O governo decidiu, pouco depois, que não iria recorrer, e o caso está praticamente encerrado. Os documentos enviados ao Ministério da Defesa e à AGU pela Casa Civil foram o último capítulo do processo. A União só espera ser citada pela Justiça Federal para entregar o Dossiê Araguaia. Depois levantar todos documentos da guerrilha, a meta agora é encontrar os corpos dos que ainda estão desaparecidos. A primeira tentativa ocorreu em março de 2004, quando familiares e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos seguiram para o Araguaia em uma busca que não teve resultados positivos. Nos próximos meses, o governo pretende fazer novas incursões. Desta vez, com informações mais precisas que podem surgir com os documentos encaminhados pelo Arquivo Nacional.
Uma lei mais transparente Ainda este ano o governo deverá mandar para o Congresso o texto final do projeto que regulamenta novas regras para os documentos sigilosos. Nos últimos anos, a questão tem se tornado uma das principais preocupações do Palácio do Planalto. O governo herdou uma lei que mantinha por tempo indeterminado o segredo de alguns papéis que poderiam colocar em risco a segurança nacional, a integridade territorial e as relações internacionais do Estado brasileiro. Mas apenas esse item deverá ser mantido na nova legislação que vai reduzir os prazos de validade dos documentos. O item mantido pelo governo tem suas razões. As questões internacionais podem afetar as boas relações que o Brasil tem no continente (leia mais na página 3), mas os segredos políticos também podem trazer ao presente fatos do passado que muitos não gostariam de revelar. Na visão do Palácio do Planalto, o momento não é de abrir feridas, mas fazê-las cicatrizar, sem esconder revelações. A caixa-preta começa a ser revelada com a liberação de documentos sigilosos de alguns órgãos do governo, como prevê o projeto. No lote enviado pelo Arquivo Nacional muitas revelações deverão ocorrer, mesmo assim outras continuarão em sigilo justamente para obedecer outra norma do governo, que é preservar a individualidade de pessoas. Muitas delas, integrantes do governo do PT que estiveram nos movimentos esquerdistas do passado.
Documentos sigilosos: as difíceis negociações de fronteira Ainda estão guardados a sete chaves nos arquivos do Itamaraty os segredos diplomáticos, principalmente as conversações que resultaram nos acordos com os vizinhos Paraguai e Bolívia Os documentos mais secretos do Estado brasileiro não são os relatórios dos órgãos de repressão do regime militar, como os da Guerrilha do Araguaia, da infiltração nos centros de treinamento de guerrilhas em Cuba ou do desmantelamento do Comitê Central do PCB, supostamente destruídos pelas Forças Armadas, mas os arquivos secretos do Itaramarty sobre as negociações para a consolidação das fronteiras brasileiras, que hoje são reconhecidas internacionalmente e por todos os vizinhos. Nem mesmo os documentos relativos à Operação Condor, uma ação coordenada de repressão nos países sulamericanos, são tão importantes como os detalhes das negociações que resultaram nos acordos de fronteira. Principalmente com o Paraguai e a Bolívia. Essas negociações começaram após a Independência e se arrastaram por todo o Império. Só foram concluídas nos primeiros anos da República, depois de muitos litígios, conflitos e guerras. O grande artífice da consolidação das fronteiras foi o chanceler José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco. Graças a ele, o país vive em paz com os vizinhos que tiveram parcelas de seu território anexadas pelo Brasil.