Pelo menos R$ 15 bilhões repassados pelo governo federal a 7.670 organizações não-governamentais de todo o país entre 1999 e 2006 devem ficar sem apuração se depender da CPI das ONGs. Instalada no Senado em outubro do ano passado, a comissão ainda não investigou suspeitas de desvio de dinheiro e irregularidades nos convênios entre entidades e o poder público.
Não foi por falta de documentação: pelo menos 22 mil folhas com documentos oficiais, relatórios de auditorias, acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU) e denúncias da sociedade civil estão nas mãos dos 11 senadores da comissão. A CPI, que já foi prorrogada uma vez, tem prazo até 22 de novembro, mas pelo Regimento Interno da Casa pode ser levada até o fim desta legislatura em 2010. A oposição acusa o governo de atrapalhar as investigações, esvaziando reuniões e evitando quorum para votação dos requerimentos, principalmente os que tratam da quebra de sigilo bancário.
Para o presidente da CPI, senador Heráclito Fortes (DEM-PI), a base do governo está sabotando a CPI. ;Vamos enfrentá-los;, diz, comentando que a estratégia é deixar o próprio governo resolver depois do resultado das eleições: ;O descontentamento nas urnas vai provocar mudança no cenário;, aposta. Ele promete para depois do período eleitoral fazer votações de requerimentos importantes, como o que autoriza a quebra de sigilo das entidades e a convocação do ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general Jorge Armando Félix.
Convidado para prestar informações sobre ONGs, inclusive estrangeiras, que atuam na Amazônia, o depoimento de Félix estava marcado para quinta-feira passada. Mas o general pediu que fosse modificada a data considerando ;inúmeras demandas que sobrecarregam as atividades de inteligência do gabinete;, incluindo outra CPI, a dos Grampos.
Reuniões vazias, requerimentos rejeitados, senadores pouco interessados e disputas políticas. Enquanto o governo quer evitar a qualquer custo o desgaste com as investigações, a oposição briga para conseguir munição. Desde que foi criada a CPI das ONGs, foram feitas somente oito sessões administrativas em que foram votados 203 requerimentos. Destes, 184 foram aprovados, sendo apenas 21 de quebra de sigilo, 85 de informações, 71 de convocações, entre outros. A ;caixa-preta; de 16 entidades está sendo analisada por técnicos da CPI. As contas de Jorge Lorenzzeti, da Unitrabalho, do ex-reitor da UnB, Timothy Mulholland, e do presidente da Finatec, Antônio Manoel Dias, também estão sob investigação. Foi com o escândalo envolvendo os dois últimos que a CPI deixou, por um curto espaço de tempo, o ;anonimato;.
Suspeitas por todos os lados
Mais de 20 mil folhas e 143 arquivos digitais foram entregues aos senadores da CPI das ONGs. O material reúne denúncias de fraudes em convênios do governo federal com entidades da sociedade civil, como a da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul), em que pairam suspeitas de envolvimento da líder do PT na Casa, Ideli Salvatti (SC). A entidade, que recebeu R$ 5,2 milhões da União entre 2003 e 2007 da União, é acusada pelo Ministério Público de desviar dinheiro público que deveria ser usado para formar e qualificar mão-de-obra na área rural.
Na época, a líder do PT negou qualquer irregularidade. Ela disse ter relações com entidades que organizam os trabalhadores da agricultura familiar e admitiu ter apresentado emendas parlamentares ao Orçamento para fortalecer o setor. Ela atribuiu as denúncias a uma guerra político-partidária que visava antecipar no estado a disputa eleitoral de 2010.
Índios
Os gastos do movimento sindical com recursos do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT) também engrossam a lista de alvos para investigação. Também na lista, as ONGs que atuam na Amazônia e teriam como função cuidar da saúde indígena em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima e Amazonas, e associações de defesa do meio ambiente.
As fraudes no programa Brasil Alfabetizado, denunciadas pelo Estado de Minas, em agosto do ano passado, também foram parar na CPI. Assim como as outras, ficaram sem investigação. O Ministério da Educação (MEC), responsável pela transferência de recursos, abriu processos de tomada de contas especial e cobra devolução de R$ 14 milhões aos cofres públicos.
Das 47 entidades, 23 foram consideradas irregulares. Outras oito continuam sendo investigadas e 16 foram consideradas regulares. O EM levantou relação de ONGs cadastradas no MEC em três estados e no Distrito Federal. O resultado foi o mesmo: endereços falsos e inexistentes, turmas fantasmas e alfabetizadores que desconhecem o programa ou tem formação precária.
Mas não só são denúncias que chegam à CPI. Informações do próprio governo sobre os convênios firmados com entidades da sociedade civil, investigações das Procuradorias da República nos estados e dos Ministérios Públicos Estaduais, auditorias e acórdãos do TCU também poderiam servir de material para as investigações da CPI.
Um governo mão aberta
Além de não dar andamento às investigações na CPI sobre o repasse de verbas federais para organizações não-governamentais e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips), o governo agora pretende permitir que essas entidades usem livremente os recursos e não apenas fiquem restritas a um objeto específico definido em contrato.
O representante da base aliada do governo, senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) já apresentou anteprojeto de lei criando marco legal. A proposta abre lacunas, por meio do convênio gerencial, que permitem a uma entidade aplicar abertamente os recursos desde que as metas sejam cumpridas.
De acordo com o plano de trabalho elaborado em outubro do ano passado pelo ex-presidente da CPI, senador Raimundo Colombo (DEM-SC), pela senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO) e pelo relator, o marco legal era apenas uma das sete linhas básicas de atuação, que inclui também a avaliação das relações do Estado com as ONGs, mapeamento da transferência de recursos do orçamento da União para entidades privadas sem fins lucrativos no período estabelecido, entre outros itens.