O Programa Saúde da Família (PSF), que só no ano passado recebeu R$ 3,9 bilhões do Ministério da Saúde, não consegue sair das unidades de atendimento, apesar de estar completando 15 anos. As equipes que deveriam acompanhar no máximo 1 mil famílias, em visitas a casas, escolas e creches, nunca estão completas. O problema é crônico: faltam médicos, enfermeiros e dentistas, além de material de trabalho e veículos, mas o repasse do dinheiro público não pára.
Na quarta reportagem da série Sangria na Saúde, o Correio e o Estado de Minas mostram que apesar de não ser possível contabilizar o valor total dos desvios no PSF, somente em cinco municípios das regiões Norte, Sul, Nordeste e Sudeste, foram investidos R$ 6.387.660, de um total de R$ 18.877.912, fiscalizados pela Controladoria-Geral da União, e, ainda assim, nenhum deles consegue cumprir as metas de atendimento.
Os exemplos de ineficácia se multiplicam, como em Mirabela, norte de Minas, onde a prefeitura recebeu do Ministério da Saúde R$ 1,5 milhão, sendo que R$ 1.074.180 deveriam impulsionar o PSF. No Amazonas, Careiro recebeu R$ 3,46 milhões e quase metade (R$ 1,187 milhão) tinha como destino manter as visitas domiciliares. Em Acopiara, no sertão do Ceará, faltam médicos nos postos, mesmo com injeção de R$ 1.995.930. As prefeituras de Primeiro de Maio e Bandeirantes (PR) receberam juntas R$ 2.130.192, e não conseguem a eficácia do programa. Para tentar atrair médicos, os prefeitos oferecem de tudo: bons salários (até R$ 12 mil), aluguel de casa, eletrodomésticos, carro e até mesmo sala para consultório particular. Tudo pago, de forma ilegal, com a verba da saúde.
Novos registros de hanseníase preocupam
A comunidade de Ibiaci, distrito de Primeiro de Maio, no Norte de Paraná, convive com ameaça grave: o registro de sete casos de hanseníase, só este ano. O índice é alarmante, de acordo com as autoridades sanitárias. Mas os portadores da doença estão abandonados à própria sorte. Até agora, nada foi feito, conforme admite M.V., servidora municipal do posto de saúde, onde deveria estar funcionando uma equipe do PSF e de Saúde Bucal. Não se pode falar em falta de recurso, somente no ano passado, o Ministério da Saúde liberou R$ 867.217 para montagem do programa.
A única parte visível do PSF são três carros estacionados no pátio do hospital da cidade. Apesar da distância significativa entre as comunidades mais carentes ; Conjunto Primeiro de Maio e Ibiaci ;, os carros ficam parados 24 horas, sob a sombra das árvores. Típica cena de uma pacata cidade do interior se, a pouco mais de 12km dali, dramas pessoais não estivessem sendo ignorados. Numa casinha, ainda de madeira, típica do Paraná, a família do bóia-fria José Rosário, de 54 anos, vítima de uma derrame cerebral e há dois anos sem fisioterapia, se revolta com a falta de assistência.
Ali, além do aposentado, vivem duas filhas e três netos menores. Nenhum deles pode contar com a assistência médica e nem pensar no luxo de ter um que acompanhe sua família como deveria ser no PSF. Para os momentos de absoluta necessidade só dá mesmo para contar com uma enfermeira que abre o posto das 11h até as 17h, mesmo sem muitos recursos.
As filhas de José Rosário, Rosana, de 25, mãe de dois filhos, e Renata, de 19, mãe de um bebê de um ano e sete meses, contam que a pesagem das crianças é feita pela Pastoral da Criança a cada mês. É só. ;Visita de médico só mesmo para pacientes muito graves e faz tempo que isso não acontece;, relata Renata.
O abandono da comunidade salta aos olhos e confirma os relatos. A casa onde deveria estar instalado o PSF de Ibiaci fica numa rua empoeirada, onde, bem na porta do posto, o esgoto escorre a céu aberto. No pequeno imóvel, o que se vê são salas vazias, remédios amontoados em prateleiras e sem uso e a falta de esperança por dias melhores.
A pouco mais de 90km dali, a situação não é diferente para outra família que vive na comunidade de Invernada, município de Bandeirantes, a 134km de Londrina, também no norte do Paraná. O casal de bóias-frias Israel José da Silva e Maria Aparecida Silva, ambos de 67, tem saudade do tempo em que o médico do PSF visitava semanalmente a família. Maria Aparecida, que sofre de diabetes e hipertensão, não precisa fazer força para dizer quando isso acontecia. Ela bateu o olho na neta Érika, 6 anos, e lembrou: ;Quando essa menina nasceu, o médico parou de vir aqui. Ela nunca foi olhada. Antes o médico vinha toda semana. Agora sumiu;. Maria Aparecida, que cuida também da filha Zilda, 27 anos, presa à cama pela depressão, diz que para percorrer mil metros que a separam do posto tem que pedir ajuda do filho, que a leva de carro.
Conheça o programa Saúde da Família
Fonte: Ministério da Saúde
# O objetivo do programa é levar a saúde até a casa das pessoas, além de visitar escolas e creches. O trabalho, feito por uma equipe multidisciplinar, promove a saúde e foca na prevenção das doenças. Funciona como a porta de entrada do sistema de saúde. Com esse modelo, o Ministério da Saúde espera que pelo menos 80% dos problemas sejam resolvidos nas unidades básicas ou com ajuda dos agentes comunitários e apenas 20% precisem ser encaminhados para outros níveis.
# As equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. O grupo é formado por, no mínimo, um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitárias de saúde. Se ampliado, conta com um dentista, um auxiliar de consultório dentário e um técnico em higiene dental. O Programa de Agentes Comunitários (PACS) é considerado parte do Saúde da Família. A ação deles é acompanhada por um enfermeiro lotado em uma unidade básica de saúde.
Números do PSF
R$ 3,9 bilhões repassados em 2007
103,3 milhões de pessoas cadastradas
28.302 equipes de saúde da família
16.552 equipes de Saúde Bucal
218.300 agentes comunitários de saúde