O destino dos caixões encontrados na última sexta-feira (30/05) no cemitério de Valparaíso de Goiás não é a caridade. As urnas cedidas pelas famílias para instituições de assistência social voltam a render dividendos ao mercado funerário depois de uma rápida escala numa entidade sem fins lucrativos. Um conjunto de dez recebidos obtidos pela reportagem do Correio comprova como funciona o esquema montado para aumentar a renda das funerárias a partir da compaixão alheia.
As notas foram emitidas pelo Parque Assistencial Jorge Cauhy Júnior, mais conhecido como Lar dos Velhinhos do Núcleo Bandeirante. Todas elas indicam um mesmo pagador: Manoel Cândido M. Neto. Ele representa a funerária Deus é Amor, que funciona a menos de 100 metros do crematório em Valparaíso. Segundo os documentos, quatro caixões foram vendidos por R$ 50 cada um. Outros quatro por R$ 100 a unidade. E dois por R$ 150 cada peça.
Na última sexta-feira, a CPI dos Ossos fez uma blitz no cemitério Jardim Metropolitano, onde funciona também o crematório que atende à demanda de quem opta por esse sistema no Distrito Federal. Os parlamentares encontraram 13 urnas empilhadas na sala onde os corpos são incinerados. Os caixões considerados luxuosos estavam em bom estado de conservação. Na ocasião, a gerência da empresa explicou que os esquifes guardados no lugar são doações das famílias, quando as mesmas decidem pela cremação apenas dos corpos. E afirmou que os produtos são doados a instituições de caridade.
O valor de todas as urnas vendidas pelo Lar dos Velhinhos para a Deus é Amor soma R$ 950. Muito menos do que a funerária pode obter depois de passar uma mão de verniz em cada um dos caixões arrematados a preços modestos. Caixões de luxo custam, no mínimo, R$ 3 mil. De acordo com o diretor do Lar dos Velhinhos Wanderlan Vieira, nenhum caixão doado foi usado pelos idosos da instituição. Ele explica que, em janeiro de 2007, o crematório de Valparaíso entrou em contato com a entidade e perguntou sobre o interesse da mesma em receber os caixões.
Questão de caixa
;Não rejeitamos nada que pode ser revertido em dinheiro para o Lar. Mas estocar esses caixões aqui seria horrível. Então, nós os venderíamos ao primeiro que aparecesse até por R$ 10 se fosse o caso;, disse Wanderlan. O primeiro e único a aparecer para comprar um total de 18 caixões ; quantidade informada por Wanderlan ; foi Manoel Neto, da Deus é Amor. Ele é genro do dono da empresa e assina todos os recibos apresentados pelo Lar dos Velhinhos.
Um outro documento emitido pela instituição contém uma autorização expressa para a funerária retirar o caixão usado da entidade. O detalhe é que as urnas foram revendidas independentemente dos óbitos ocorridos na instituição no último ano. ;Quem paga as despesas de enterros e funerais de pessoas vinculadas ao Lar é a própria instituição ou o serviço social do governo;, afirmou o diretor da entidade.
Lei facilita o comércio
A doação formal a instituições de caridade é o álibi perfeito para o mercado funerário reciclar e revender caixões usados. Como caixão é o tipo de produto que não vem com número de série, garantia ou embalado, é bastante fácil torná-lo novo com alguns reparos. Não existe legislação clara que regulamente o destino das urnas usadas. Também nada impede que as entidades sem fins lucrativos vendam o que ganharam como doação.
O que há são limitações da Vigilância Sanitária aplicáveis ao comércio dos caixões. Uma delas: vestígios dos corpos eventualmente encontrados nas urnas podem ser nocivos à saúde e, por isso, devem ser tratados com o mesmo cuidado dispensado ao lixo orgânico. Ao que tudo indica, tais restrições estão longe de impedir o manuseio ou mesmo a revenda dos caixões de segunda mão.
Há dez dias, integrantes da CPI dos Ossos encontraram uma marcenaria com 32 caixões usados à espera de reforma. Em alguns deles, havia sangue e secreção dos corpos. Policiais civis interditaram o local e indiciaram a funerária responsável pelas urnas com base no artigo 132 do Código Penal, que pune quem coloca em risco a saúde de terceiros.
O Correio entrou em contato com a funerária Deus é Amor por telefone. Os proprietários foram avisados sobre o teor da reportagem, mas até o fechamento da edição não retornaram. Por meio de sua assessoria de imprensa, a Jardim Metropolitano afirmou que as doações das urnas são autorizadas pelas famílias e que a responsabilidade da empresa acaba após a entrega dos caixões ao Lar dos Velhinhos. A partir daí, a negociação é entre a entidade e a funerária.
A Jardim Metropolitano pertence a Francisco Moacir Pinto. O empresário é dono da concessão dos seis cemitérios do Distrito Federal. (LT)