Opinião

Julho das Pretas

Correio Braziliense
postado em 25/07/2020 04:14

Em 2007, recebi um DVD com imagens do 1º Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas, realizado na República Dominicana em 1992. Mulheres negras de 70 países reuniram-se para construir estratégias de superação do racismo e machismo. Ali, foi instituído o 25 de julho como Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha — um marco de lutas e resistência da mulher negra na região e iniciativa que mudaria os rumos da minha vida.

Como artista e produtora cultural, sempre acreditei na capacidade que os encontros têm de transformar as pessoas e das pessoas de transformarem o mundo. No mesmo ano, junto de duas amigas, criei uma empresa especializada em cultura negra, incomodada com a falta de espaços para a circulação da produção de arte, cultura e conhecimento protagonizado por pessoas negras no Distrito Federal.

Então, veio a ideia de criar um projeto para dar visibilidade ao 25 de julho e, ao mesmo tempo, impulsionar saberes e fazeres de mulheres negras da capital. Nascia o Festival Latinidades, que, menos de dois anos depois, tornou-se o maior festival de mulheres negras da América Latina e um dos maiores responsáveis por difundir a data no Brasil.

Somos quase 100 milhões de mulheres negras na América Latina e Caribe — força motriz de desenvolvimento e transformação. Sujeitos históricos com produção de memória e patrimônio científico, artístico, material e imaterial incomparáveis, que se organizam para disputar epistemologias que nos representem, mesmo enquanto carregamos a pirâmide social nas costas.

O movimento tem muitos projetos para a sociedade e o olhar sistêmico de quem conhece a realidade da maior parte da população. Mas o peso e a responsabilidade precisam ser divididos. É trágico caber justamente à parcela mais vulnerabilizada o empenho de materializar mudanças necessárias. Esse tem sido um fardo que carregamos desde as primeiras vivências de racismo na infância e precisamos discutir a respeito.

Em 20 de novembro de 2019, a convite do Ponto de Cultura Palco, fui facilitadora de uma vivência no Varjão, que reuniu, aproximadamente, 50 crianças com idade entre nove e 12 anos. A atividade teve como fio condutor uma pergunta aparentemente simples: qual é o seu sonho? “Sonho de quando a gente dorme ou sonho que a gente sonha acordado?” “Pra quando eu crescer?” ”Pra mim?” “Pro mundo?”

A reação à minha provocação veio com uma avalanche de outras perguntas, como é bem típico da curiosidade e entusiasmo das crianças. Respondi que valeria tudo, qualquer sonho, pessoal ou coletivo; que elas poderiam soltar a imaginação para o alto e além. Meses atrás, havia feito a mesma dinâmica com crianças dessa faixa etária. Eu me diverti com a capacidade imaginativa delas, querendo coisas como pegar carona na cauda do cometa ou ter superpoderes inimagináveis.

Mas, no Varjão, foi diferente. Todas as crianças expressaram desejo profundo de acabar com a violência e com a pobreza do mundo e de dar uma vida melhor para as mães. Importa explicar que a primeira vivência foi realizada em uma escolinha no Lago Sul, onde não visualizei nenhuma criança negra. Na atividade do Varjão, com mais de 90% de crianças negras, a preocupação era com problemas gravíssimos da sociedade, por vivê-los na pele desde que nasceram. Muitas tinham o desejo de serem brancas, porque não se viam representadas dignamente.

Eu sempre acho que existe um rap para todas as circunstâncias da vida. Voltei para casa ouvindo Mágico de Oz, do grupo Racionais MC’s. Nos primeiros momentos da música, um menino responde à mesma pergunta feita por mim no Lago Sul e no Varjão: “O meu sonho é estudar, ter uma casa, uma família. Se eu fosse mágico? Não existia droga, nem fome, nem polícia”.

O movimento de mulheres negras articulou, por meio do 25 de julho, mais um espaço potente para confrontar as estruturas de exclusão e disputar narrativas de equidade. Alimentar e proteger os sonhos e a vida de crianças negras para que elas possam se projetar para além das vivências que o racismo impõe é uma das urgências. Por isso, o Julho das Pretas 2020 traz os temas do bem-viver e das utopias negras, ao mesmo tempo em que chama a atenção para o fato de que a luta antirracista não pode mais ser tarefa só da população negra.
 

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