Foi o que aconteceu com o surto de covid-19: tecnologias, processos e estratégias de saúde que já estavam em fase de implantação ganharam força e velocidade diante da necessidade de combater a pior pandemia que o mundo já viveu nos últimos 100 anos. Tudo indica que o que antes eram experiências pontuais, adotadas por alguns hospitais e clínicas pelo mundo, tenham vindo para ficar, transformando de vez a forma de fazer medicina no mundo.
Caso muito claro é o da telemedicina. Se antes havia certa resistência dos médicos em aceitar sem restrições o atendimento a distância, o surto de coronavírus provou que essa era a única maneira segura de acompanhar os pacientes. Temos um exemplo no próprio Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe): o atendimento via telemedicina, que antes era apenas incipiente, aumentou de modo significativo e veio para ficar.
A telemedicina tem se mostrado particularmente eficaz em cidades pequenas ou em regiões mais distantes do Brasil, onde é impossível ter a presença de todas as especialidades médicas. Ao longo do Rio Amazonas, por exemplo, existem 200 comunidades ribeirinhas, muitas delas com acesso apenas de barco –– a telemedicina, nesse caso, é a maneira ideal de prestar assistência a essa população.
É evidente que atendimentos emergenciais, ou mesmo os que exigem que o paciente seja examinado, continuarão sendo presenciais. Mas o atendimento a distância, por videochamada, pode ser adotado para consultas preliminares, acompanhamento do paciente, avaliação de exames, além de proporcionar a troca de opiniões sobre diagnósticos e condutas terapêuticas entre o corpo clínico.
Outra estratégia que será bastante difundida é o uso de estruturas móveis, capazes de levar o equipamento até o paciente. Bom exemplo foi a decisão da Prefeitura de São Paulo em lançar, em 2018, o Corujão da Saúde: mutirão que zerou uma fila de 768 mil exames em apenas 82 dias. Somente em exames dermatológicos foram realizados 20 mil em apenas um mês, na Zona Sul da capital, com apenas uma carreta equipada com dois dermatoscópios.
O segredo por trás disso foi algo que também aponta para o futuro da medicina no pós-pandemia: a parceria entre as redes de saúde pública e privada. Estruturas móveis já se mostraram excelente recurso em situações nas quais há aumento inesperado de casos, como no surto infeccioso provocado pelo coronavírus. Instaladas de modo provisório nos locais onde a fila é maior, essas estruturas são capazes de atender, com rapidez, a grande número de pacientes. Vale inclusive para UTIs móveis, que serão cada vez mais comuns, e mesmo para hospitais móveis –– estruturas provisórias, semelhantes aos hospitais de campanha, que poderão ser instaladas em questão de dias onde quer que seja necessário.
Certamente, haverá mais experiências como essa no futuro próximo, pois está ficando cada vez mais claro que deve existir integração entre todas as possibilidades de atendimento se quisermos evitar o colapso do sistema de saúde. Isso inclui não só a parceria entre o público e o privado, mas, também, a reorganização das redes de saúde. É preciso um pensamento voltado para a economia de escala, capaz de dimensionar a estrutura de atendimento como se fosse uma esquadra naval, em que navios grandes e pequenos atuam em consonância para garantir a vitória.
Batalhas como essa que estamos travando contra a covid-19 nos mostram que uma rede eficiente é aquela em que todas as unidades de saúde agem conforme a dimensão e a complexidade da demanda: leitos de estabilização em cidades pequenas, por exemplo, com o suporte de UTIs e centros cirúrgicos nas maiores para os casos mais graves. Para que isso ocorra, porém, é imperativo que haja planejamento, uma regulação de vagas bem-alinhada e vontade política. Caso contrário, correremos novo risco de colapso.
Aproveitando a terminologia de guerra, acredito que a indústria médica deverá ser, daqui em diante, tão estratégica quanto a indústria bélica. A maioria dos gestores já percebeu que não pode depender de outros países para o fornecimento de equipamentos. Podemos chegar facilmente a situações como a da recente carga de 600 respiradores artificiais que estava a caminho do Brasil e acabou sendo retida nos Estados Unidos. É o aviso de que um país que quiser manter a saúde em dia não poderá mais delegar para outros a produção de insumos médicos.
Uma indústria nacional deverá, por sua vez, revelar-se, também, oportunidade valiosa para a abertura de mercado e a geração de empregos, assim como deve ocorrer com a telemedicina e a proliferação de estruturas móveis — o que aponta para o fortalecimento desse setor da economia nos próximos anos. Quem sairá mais fortalecida dessa pandemia, porém, será a própria medicina: no mundo pós-covid, tudo leva a crer que o acesso à saúde jamais será como antes. Se tudo correr como se anuncia, teremos à nossa disposição uma medicina mais moderna, mais acessível e mais eficaz.
* Médico e superintendente do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe), foi diretor-executivo do Instituto Central do Hospital das Clínicas, secretário adjunto da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e secretário municipal de Saúde de São Paulo entre 2017 e 2018
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