Para falar sobre ancestralidade, precisamos, antes, falar de hereditariedade e fenomenologia. Aquilo que nos compõe, não somente elementos culturais ou sociais — sim, somos resultado de um processo cultural não isento, nem neutro, mas contextualizado — mas, para, além disto, o corpo traz marcas genéticas naturais e transmutadas pelo tipo de vida que os antecessores viveram. Essas marcas passam ao nosso corpo geneticamente, fenômeno físico, filosófico, espiritual, mítico e desemboca no espectro cultural, social e comportamental.
Para a cultura e filosofia yorubá, o nosso corpo é fenômeno ancestral. Muitas vezes não nos compreendemos, nem nosso espaço, e nos sentimos como pessoas estranhas na coletividade. Essa estranheza ou diferença é aspecto da nossa ancestralidade, já que esse modelo de ser no mundo não respeita nossas peculiaridades. A moral do rebanho e os reforços da mídia sobre um modelo ideal de ser gente contrastam com o que dizem e sentem nossa mente e corpo.
As doenças que atingem em cheio o povo negro e os males sociais que o cerceiam são provas vivas de ancestralidade forjada sob açoites. Basta olharmos a condição biopsicossocial dessa população, os casos de suicídio, a depressão que tem origem no banzo, o processo de escravização, a má interpretação das manifestações espirituais na nossa história, relacionando-as à esquizofrenia, doenças cardíacas, problemas motores e deficiências físicas características do nosso povo. Sem falar nas questões de perseverança e de prosperidade financeira e a alocação segura do povo afro-brasileiro nos guetos e favelas.
Como falava Helder Câmara, há criaturas que, como a cana, mesmo sendo esmagadas só sabem dar doçura. Os povos africanos e afro-brasileiro têm uma das mais fortes expressões culturais no território nacional. Quanto à distinção entre africano e afro-brasileiro, explico que o afro-brasileiro é fruto da mistura de etnias africanas num encontro multicultural com o indígena e o europeu, formando um tipo de África que só dá aqui.
Já africano se refere a pessoas que não tiveram essa mistura, pelo menos não da forma que tivemos aqui, como grupos étnicos do continente africano que estão, hoje, no Brasil, que não reconhecem na íntegra os costumes afro-brasileiros, veem coisas semelhantes, mas não iguais, sem falar que, a vinda de imigrantes da África para o Brasil ultimamente traz um modelo novo de estilos e formas culturais para nosso país.
Os principais ritmos brasileiros têm traços da cultura africana, porém não são os rostos nagôs que povoam o imaginário coletivo nem o hall da fama. As estruturas da elite apropriam-se da herança ancestral, dissociam a manifestação cultural, ancestral e filosófica da comunidade negra e apresentam formatado para consumo, fazendo com que o público ame o produto, mas odeie os fabricantes. Ou seja: a cultura é apreciada, mas o negro é exterminado, inclusive exterminado da vida. Sumir com a figura do negro faz parte da ideologia do extermínio, sobretudo do homem negro, enquanto as mulheres são dominadas e transformadas em produtos de consumo sexual.
O axé music sai dos terreiros de candomblé, o funk carioca sai dos toques de maculelê e de adahun (ritmo ritualístico do orixá Ogun) das casas de santo. E, assim, o samba, o uso de vestes e de estilos de cabelo. Inclusive na religião, os orixás aparecem brancos e altamente sincretizados com os santos católicos, bem como com a sua teologia, atribuindo aos orixás qualidades próprias da moral cristã.
Ancestralidade e cultura são questões preciosas que precisam ser levadas a sério e vivenciadas com respeito quando determinados grupos se apropriam de modos e costumes, sem fazer a devida reverência aos que os antecederam naquele modo. Entendo que é como se eles mantivessem a escravização dos negros, mas, dessa vez, num cativeiro imagético, numa prisão sem muros.
Somente respeitando os que nos precederam é que respeitaremos o que somos e deixaremos legado rico para a nossa descendência. Com isso não quero dizer que a cultura afro-brasileira e africana não seja aberta a todos, muito pelo contrário. Ela é aberta e, desde o início, recebe a todos, porém, não podemos nunca dissociar o existir da sua essência.
*Filósofo, teólogo e pedagogo, é gestor do Instituto Sartre, sacerdote do culto de Ifá e Orixá, escritor, cantor e compositor