Opinião

O bicentenário e a nação

''Acredito que a identidade brasileira está em crise, como fica claro desde a redemocratização em meados dos anos 1980''

Há um par de semanas escrevi aqui sobre a estratégia de superarmos as crises por que passamos construindo em torno do sentido de nação (ver https://bit.ly/2BFo9sz). Quero voltar ao tema. A nação é uma abstração, uma crença, uma criação que existe apenas na imaginação compartilhada dos seres humanos. Como o são o dinheiro, a religião e tantas outras instituições igualmente ou até mais centrais na vida.

Em o O pecado original da República, José Murilo de Carvalho assim desenvolve esse ponto: Benedict Anderson desenvolveu a ideia de que nações são comunidades imaginadas, isto é, construídas graças a variado arsenal de técnicas desenvolvido, sobretudo, durante o século 19. Faziam parte desse arsenal a elaboração de mitos de origem com a ajuda de documentos antigos e da busca de ancestrais comuns, a criação de heróis, a imposição de uma única língua, o uso da paisagem como marca de identidade, os museus etnográficos, as exposições internacionais, o folclore, o romance histórico à maneira de Walter Scott, a ópera, os monumentos. Tal construção equivale ao que hoje se convencionou chamar de memória nacional, em anteposição ao que seria a história nacional. A memória é a história ajustada às necessidades da construção da identidade nacional”.

Como em outros países com passado colonial, a Independência do Brasil foi um grande marco na construção da nossa memória histórica. Não só porque marcou o nascimento do Brasil como nação independente, mas também porque, ao contrário da Proclamação da República, envolveu diretamente a população, como em guerras na Bahia, Maranhão e Pará. Como observa Carvalho: “No Rio de Janeiro, foi intensa a participação popular, manifestada, sobretudo, no episódio do Fico, quando um abaixo-assinado com 8 mil nomes foi entregue a D. Pedro solicitando que permanecesse no país. Para uma cidade com uns 150 mil habitantes, em sua maioria analfabetos, era número extraordinário”.

Surpreendentemente, porém, estamos a pouco mais de dois anos da celebração do bicentenário da Independência, e o tema segue esquecido. Governo, imprensa, redes sociais, ninguém parece ter acordado para isso. Para mim soa inacreditável que não estejamos preparando solenidades, livros e, acima de tudo, refletindo sobre o que conquistamos nestes 200 anos. E, claro, quais os ensinamentos para o futuro. Enfim, mais um sinal de que estamos perdendo o sentido de nação, de comunidade integrada. Por que isso e o que podemos fazer a respeito?

Como discute Yuval Harari em Sapines: a brief history of humankind, “nós acreditamos em uma particular ordenação (das coisas) não porque ela é objetivamente verdadeira, mas, porque, acreditando nela, nos permite cooperar efetivamente e construir uma sociedade melhor”. Mas, completa Harari, “uma ordenação imaginada está sempre sob risco de colapso porque depende de mitos, e mitos desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles”.

É também a conclusão a que chega Carvalho ao argumentar que “(a) existência de uma nação, resumia (Ernest) Renan na expressão que ficou famosa, é um plebiscito de todos os dias, é a vontade comum de seus habitantes. Nessa visão, a convivência difícil e tensa entre as duas dimensões, a invenção e a participação, é que viabiliza uma identidade nacional efetiva. O excesso de esquecimento e erro leva à ineficácia da narrativa nacional em construir a identidade de um povo. Caso já haja identidade em construção, ela pode levar ao seu esvaziamento e, eventualmente, à sua crise. Nessa hipótese, coloca-se como exigência a reformulação do imaginário nacional, a reescrita da memória de acordo com a vontade dos cidadãos”.

Acredito que a identidade brasileira está em crise, como fica claro desde a redemocratização em meados dos anos 1980. Temos buscado reformulá-la, mas sem coordenação, criticando a nós mesmos, ou uns aos outros, e buscando mudanças pontuais, em vez de nos unir para reinventar nosso imaginário nacional. É muita polarização e muita raiva. O resultado é o desajuste fiscal e a elevada incerteza, que inibem o crescimento e a capacidade de construir uma sociedade melhor.

Precisamos refletir mais objetivamente sobre isso, tendo a reinvenção da nação como foco principal. A celebração do bicentenário da Independência é ótimo momento para discutir as lições e como melhorar as coisas para a frente. Ou acabará se perdendo em outra rodada de brigas, como nos 500 anos do Descobrimento.


* Coordenador de economia aplicada do IBRA/FGV e professor do IE/UFRJ