Opinião

Artigo: A tribuna dos irresponsáveis

Para uma multidão de espectadores curiosos, anônimos revezam-se em um palco em que falam o que querem. As inscrições para discursar são livres. Nem se identificar é preciso. A empresa dona do recinto não cobra pelas entradas, mas lucra com a venda de produtos e a distribuição de panfletos para o público. Um dos inscritos da noite sobe na tribuna e tenta divertir a plateia diferenciando o “preto-raiz”, que “obedece ao senhor de escravos”, e o “preto-nutella”, que “questiona a autoridade”. Mais à frente, uma senhora que se apresenta como médica fala da possível conexão entre vacinas e autismo. Ela é um sucesso de público. Ao todo, quase 700 mil pessoas já assistiram a essa “polêmica” apresentação da “especialista”.

A proprietária da arena, defensora fervorosa da liberdade de expressão, nega responsabilidade pelo conteúdo das manifestações. No seu palco, segundo a empresa, cada um diz o que quer. Garante ter tomado medidas para que nenhum vendedor credenciado ofereça os produtos durante as apresentações comprovadamente falseadas, mas insiste em não exigir a identificação dos falantes e segue permitindo que o palco seja usado por racistas e charlatães.

Os casos acima não foram inventados. São adaptações de postagens que circularam, respectivamente, no Facebook e no YouTube. Nas mídias sociais, os usuários publicam o que bem entendem sem precisar se identificar previamente. Algumas mensagens podem chegar a audiências que teatro nenhum comportaria. De forma ainda mais ativa do que a empresa da ilustração, as gigantes da comunicação digital, por meio de algoritmos, determinam o alcance de cada mensagem. Em alguns veículos, suspeita-se de que haja favorecimento a mensagens consideradas polêmicas — eufemismo, muitas vezes, para mensagens extremistas ou simplesmente falsas.

Coincidência ou não, depois que o uso dessas plataformas se disseminou pelo mundo, ganharam força movimentos supremacistas, negacionistas da ciência e conspiracionistas em geral. O compartilhamento de mensagens inidôneas, por meio de textos, vídeos e imagens, influenciou nas políticas de saúde pública e nas eleições mundo afora e ajudou a moldar os humores da sociedade contemporânea.

As mídias sociais não lucram apenas com a venda direta de produtos e com a publicidade, como o nosso teatro imaginário. Vendem também dados dos usuários. O modelo de negócio é extremamente rentável e o mercado está entre os mais concentrados. São empresas tão poderosas que, por muito tempo, conseguiram tourear a responsabilidade perante a opinião pública, ora com a defesa inflamada de liberdade de expressão absoluta, ora com apologia vazia da inovação. Arregimentaram, também, uma legião de defensores, com raízes da academia à política.

O Projeto de Lei nº 2.630/20, também conhecido como PL das Fake News, a ser votado em breve na Câmara dos Deputados, depois de ter sido aprovado no Senado, tem o mérito de, finalmente, cobrar responsabilidade das plataformas quanto ao que é exibido nas suas grades. Prevê, por exemplo, procedimentos transparentes para a moderação de conteúdo irregular e exige controles abrandados de identificação dos usuários, em harmonia com a vedação constitucional expressa ao anonimato.

Ainda assim, a reação tem sido efusiva. O próprio presidente da República — em meio a suspeitas sobre a exploração das plataformas por alguns de seus apoiadores para a disseminação de campanhas de desinformação, quando não para a simples difamação de detratores — insinuou publicamente a possibilidade de fazer valer o poder de veto. As empresas de mídia social também se uniram para questionar a legitimidade do projeto, sempre procurando apoiar-se em interpretação incondicionada da liberdade de expressão. Aludem, também, a supostos riscos à privacidade, apesar de o projeto manter o controle da identidade dos usuários sob a tutela das próprias plataformas.

Nesse debate sensível para o futuro da democracia, é preciso dar ouvidos não apenas a quem se beneficia com a reprodução desenfreada de conteúdo apelativo, seja por interesses políticos, seja por interesses meramente econômicos. É preciso que a própria sociedade civil reflita sobre a responsabilidade dos agentes que fruíram por tanto tempo da ausência de regras objetivas a respeito dos limites para a propagação de mensagens nessa esfera cada vez mais importante da comunicação social contemporânea.


*Roberto Ricomini Piccelli é advogado, mestre e doutor em direito constitucional pela USP