Opinião

Abuso de poder religioso?

''A tese do abuso religioso é eivada de uma visão equivocada, que tenta excluir as pessoas de fé do debate público. O Estado é laico, não laicista. Não é possível excluir da discussão política quem tem e assume a fé''

Correio Braziliense
postado em 01/07/2020 04:15
''A tese do abuso religioso é eivada de uma visão equivocada, que tenta excluir as pessoas de fé do debate público. O Estado é laico, não laicista. Não é possível excluir da discussão política quem tem e assume a fé''Discussão recorrente nas últimas eleições, a participação de cidadãos religiosos no debate político voltou à cena porque o ministro Edson Fachin propôs que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) reconheça, a partir das eleições de 2020, o “ilícito” de “abuso de poder religioso”. O “culpado” seria punido até com a cassação do mandato.

O caso comprova que até os mais eruditos e brilhantes juristas, como é o ministro Fachin, podem se equivocar. O crime de abuso de autoridade religiosa afronta a Constituição, que tem como um de seus fundamentos, no artigo 1º, o pluralismo político e inclui, entre os direitos e garantias individuais, no artigo 5º, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. A Carta também veda, no artigo 19, que o Poder Público crie “distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.

A tese do abuso religioso é eivada de uma visão equivocada, que tenta excluir as pessoas de fé do debate público. O Estado é laico, não laicista. Não é possível excluir da discussão política quem tem e assume a fé. O próprio TSE, ao julgar o RO 265.308, em 2017, decidiu que a Constituição e as leis eleitorais não contemplam a figura do abuso do poder religioso porque o Congresso jamais criou essa figura. Se o Judiciário criasse esse crime eleitoral, haveria um ativismo inaceitável, com mais uma invasão das competências do Legislativo — além do desrespeito ao texto constitucional.

A tipificação do ilícito eleitoral em face somente dos religiosos também seria flagrante discriminação, uma perseguição religiosa. Não há debates dessa natureza sobre outros setores. Ainda que possa haver excessos e até coação psicológica para direcionar os votos em outros nichos, não está posta a hipótese de criar, por exemplo, o crime de “abuso de poder ambientalista”, “ruralista” ou “sindicalista”.

Nessas situações, a influência é considerada legítima, como o simples exercício da liberdade de pensamento. Religiosos não poderiam falar sobre política porque são imaturos ou incapazes de abordar temas complexos e fundamentais para o país? Isso chega a soar ofensivo.

A “coação moral de natureza eleitoreira” é muito mais frequente em universidades e em shows multitudinários do que nas igrejas. O Estado Democrático de Direito não admite tratamento diferente para liberais e conservadores, sindicatos e igrejas, artistas e ministros religiosos. Isso, sim, configuraria um Estado fascista.

Michael Sandel, professor de Harvard, observou que pessoas encaram a disputa política a partir das visões de mundo e, legitimamente, alguns cidadãos formam convicções a partir da religião. Para ele, pedir aos cidadãos que abandonem as convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública democrática evidencia falsa neutralidade.

O próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 548, garantiu a livre manifestação de ideias em universidades durante período eleitoral, cassando atos que proibiam o debate no ambiente acadêmico. Estudantes e professores universitários têm mais direitos do que os religiosos que não participam da academia? A fé faz de alguém cidadão de segunda classe?

Só quem se submeteu ao crivo do voto popular pode criar normas gerais. Por isso, é antidemocrático o TSE legislar. Mesmo os 11 ministros do STF, ainda que bem-intencionados, não podem ocupar o lugar de 513 deputados federais e de 81 senadores. No Congresso há negociação, debate e uma representatividade social que inexiste no Judiciário. Há também mandatos, que garantem maior respeito ao povo.

Por fim, há controle posterior, o que garante o equilíbrio dos Poderes e a chance de correção de eventuais erros, inclusive pelo STF. Quando os juízes legislam, aí, sim, temos abuso de autoridade.

Os limites eleitorais, obviamente, devem ser respeitados. É preciso coibir as propagandas irregulares dentro dos templos, os eventuais abusos de poder econômico e de meios de comunicação, quando usados pela religião. Mas isso deve ser feito dentro das regras eleitorais, não com a criação de um tipo específico que resultará apenas em criminalização da fé.

O voto do ministro Fachin parece suscitar a velha e ultrapassada afirmação de que política e religião não se misturam. O Judiciário não pode criar lei nem impor discriminações que terminariam por perseguir os valores religiosos. Isso violaria a Constituição e o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esperamos, respeitosamente, que o TSE não queira tornar “lei” essa tese equivocada.


* Professor e juiz federal 
** Professor e conselheiro do IBDR 

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