Opinião

Opinião: Eleva a dor

''Miguel Otávio da Silva fazia birra. E ria ao entrar num elevador para vencer alturas sozinho, diferente do morro onde vivia. A doméstica Mirtes Renata tomava conta das necessidades do cachorro da patroa''

Desenhamos crianças como se anjos fossem. Insistimos até no nome. Mas na hora de voar, aos cinco anos, Miguel foi abatido a golpes de realidade. E acabou. Uma frase que não deveria existir. O menino acabou. Pôs-se findo. Inverteu o curso das coisas inteligíveis.

Miguel Otávio da Silva fazia birra. E ria ao entrar num elevador para vencer alturas sozinho, diferente do morro onde vivia. A doméstica Mirtes Renata tomava conta das necessidades do cachorro da patroa. Porque é isso que se faz: põe-se à frente necessidades do alfabeto inteiro de quem paga para, então, se voltar aos seus.

Numa mesma vida, já fui filho da dondoca e da empregada. E, do alto de meus privilégios, fui branco, mesmo que preto. Explico. Meu pai já foi ausente e minha mãe, impaciente, interessada só nas próprias unhas. Mas, classe média, colégio particular e brinquedos em dia, não enxergava diferença entre minha pele e a dos pares. A redoma de classe nos põe a venda da indiferença.

O olhar só muda quando se quebra o conforto; quando se pensa em cortar o cabelo para abrir portas; quando, à noite, sirenes mais gelam a garganta que aliviam; ou na primeira vez, dentro de loja, que se raciocina bem sobre ato e velocidade de abrir mochila ou pegar celular no bolso. Então, nos vemos filhos de empregadas e não falta quem aperte botões para nos entregar à própria sorte.

Brada-se que vidas pretas importam, mas 80 tiros por engano não param o país; nem um alvejar de criança em farda de escola; nem vídeos a mostrar quem encurrale e sufoque tudo, até juventudes. Somos taxas, classificadas entre “bandidos” ou “fatalidades colaterais que não representam modos e valores da corporação”. E nessa patente nacional, todos batemos a continência do silêncio passivo e ratificamos, aos poucos, que é nossa culpa não ter asas para evitar quedas.Miguel caiu do 9º andar de um prédio com nome de colonizador que violenta o centro histórico do Recife. O baque ecoou no Brasil, que berrou por um intervalo de novela e voltou a discutir a volta do futebol. Diz-se que o menino, que só tinha nome de anjo, “poderia ser meu filho”, mas, na calada, pensa-se “graças a Deus, não o era”.

Queremos muito crer que sempre escolheríamos diferente; que estaríamos ali para proteger o garoto; e, silenciosamente, preferimos o privilégio. E, na velha crença de que mal só acontece ao outro, não enxergamos que a maior parte de nós está na rua, conduzindo cães alheios. Sabemos e esquecemos por querer. É que quando Miguel caiu, parte da gente, que nem o conhecia, foi obrigada a se olhar no espelho.