A semana começou com forte emoção. Assisti à posse do novo secretário Nacional de Justiça, Cláudio de Castro Panoeiro. Ele é cego. E, sem medo do desconhecido, conseguiu se formar em primeiro lugar, com nota máxima, doutor em direito pela Universidade de Salamanca, na Espanha. Ele foi a primeira pessoa cega a fazer sustentação oral no STJ. Teve fortes decepções na vida, é verdade, como a que aconteceu na última fase de um concurso para juiz federal, ao ouvir do examinador:
— Não reconheço a possibilidade de ter um juiz cego.
Ao assumir a Secretaria Nacional de Justiça, Panoeiro resgata tantas outras histórias da própria vida e da vida de outras pessoas deficientes. O segredo do sucesso? Em três frases, o próprio Panoeiro explicou: “O sucesso de qualquer pessoa, deficiente ou não, depende de dois elementos. Que ela tenha vontade de chegar a algum lugar e tenha oportunidade de alcançar seus objetivos”.
Volto a 2007. No 40º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, aprendi velha lição: só é cego, mesmo, quem não quer ver. Essa história, há 13 anos, mudou minha vida e mudou, sobretudo, a relação dos patrocinadores e apoiadores da sétima arte. O exemplo de Brasília despertou a importância da acessibilidade para cegos e surdos nos cinemas e na produção cinematográfica.
Vale lembrar: um mês antes da abertura do Festival de Cinema, fui provocado pela flautista e educadora Dolores Tomé, na época coordenadora do Núcleo de Inclusão Cultural e Social da Secretaria, que os cegos queriam participar do Festival. Tivemos que desenvolver uma tecnologia para que eles tivessem a audiodescrição da imagem da tela (quando não houvesse som) para o perfeito acompanhamento do filme.
Foram quatro testes no Cine Brasília, com uma ajuda efetiva do César Achkar, então presidente da Associação Brasiliense dos Deficientes Visuais, e de outros 17 cegos. Testes para criar um mecanismo viável com o qual os cegos pudessem assistir ao festival. O projeto começou com as gravações em estúdio da audiodescrição em DVD dos 18 filmes selecionados. Depois, passadas por MP3 para cada cego. Todos aprendemos muito.
Fico pensando. Ninguém viu a linha do Equador. Beethoven era surdo e compôs as mais belas músicas. Einstein nunca viu a velocidade da luz, mas decifrou seus segredos. Guglielmo Marconi nunca viu uma onda de rádio, mas conseguiu transmitir sinais radiofônicos. Enfim, ninguém viu a alma, o amor e a saudade, mas sente ser real. Louis Braille perdeu a visão aos três anos. Não se entregou. Aos 16, em 1825, com base no emprego de pontos em relevo binário, deu ao mundo um presente: o sistema Braille. Morreu com 43 anos e deixou essa herança divina.
Cláudio Panoeiro é a prova de que se foi o tempo em que os cegos não enxergavam. Que eram dependentes. Hoje eles ultrapassam barreiras, aceitam desafios, surpreendem e provam que a pior cegueira é a que impede mesclar ações e conquistas da raça humana com solidariedade. As lições do Festival de Cinema ressoam com a posse de Cláudio Panoeiro. Pensar que um dia ele foi impedido de ser juiz por ser cego. A pior cegueira está no orgulho, no egoísmo e na prepotência.
Cega e surda desde bebê, a escritora norte-americana Helen Adams Keller gostava de imaginar o que um cego mais gostaria de apreciar se pudesse ver por um dia. Este é o ponto: enxergar (ou não) por apenas um dia. Deveria ter um programa, um software que possibilitasse às pessoas cegas enxergar por apenas um dia. E que as pessoas que enxergam ficassem sem a visão também por um dia. Uns e outros passariam por transformações. Passariam a enxergar com a alma e a ver além do olhar.
Para os cegos, seria fantástico perceber as qualidades essenciais de outra pessoa ao monitorar as sutilezas de expressão da boca, dos músculos da face, das mãos e até do respirar. Ver o voo rasante de uma juriti e a exuberância de uma flor. Ver o fetiche de uma piscadela e o magnetismo de um sorriso galanteador.
Para os videntes, seria um aprendizado perceber o desabrochar de outra natureza vivenciada apenas pelo tato e pelo olfato. As trevas os obrigariam a perceber a alegria ou a tristeza de um amigo pelo afago. As lágrimas só poderiam ser vistas pelo umedecer das pontas dos dedos. As diversidades e os mistérios da natureza só poderiam ser descobertos pelas palmas das mãos.
Talvez essa bênção de fazer ver (para quem é cego) e de cegar quem vê, mesmo que por um dia, faria o mundo mais justo, a vida mais solidária e o cotidiano mais harmonioso, mais leve e tolerante. O mundo precisa enxergar essa realidade.