Opinião

Medo

''No Brasil, ter o poder é mandar, ainda que de forma individual e grosseiramente casuística, quando se exigem conjugações das forças, sob a atuação segundo a competência expressa, prevista na Constituição, em respeito ao direito à cidadania''

Correio Braziliense
postado em 09/06/2020 04:05
O Brasil está com medo e sob medo, situação muito preocupante para a afirmação de que a democracia consistiu numa reconquista irreversível. Fenômenos políticos, sociais, econômicos e sanitários agravaram a sensação de que conflitos entre os Poderes da República intensam a realidade institucional, com risco de ruptura.
 
Conflitos de interesses se governam por influência do individualismo institucional com que se comportam os Poderes da República. O autoritarismo sempre foi presença na vida nacional, mesmo em tempos de lampejos institucionais. Há grande ilusão de que o autoritarismo foi superado por rearranjos, como se o arejamento legal bastasse para promover a assepsia do entulho deixado pelas ditaduras, depositado no recôndito do aparato estatal.
 
Suas raízes se aprofundaram quase de maneira invisível, malgrado sentido nas relações entre o Estado e o cidadão, tratado com desdém incompatível com a cidadania. Concentra-se na história da formação do Estado brasileiro a construção de privilégios para os senhores que se alojaram nos vastos espaços públicos, reservados à burocracia, estamento mais aquinhoado com privilégios, benefícios e vantagens.
 
O Estado, pela ilegítima força da burocracia, derrotou a sociedade, que comanda as diretrizes do neopatrimonialismo, que deixa a cidadania inerme. Nas zonas ocultas ou oclusas, milita o autoritarismo, que, nos dias que correm, perdeu a timidez e emergiu no âmbito dos Três Poderes, sem respeito algum à Constituição.
 
O quadro incomoda demais porque faz prevalecer a certeza de que desconhecemos o significado e o resultado da Carta. Parece que colegiais se divertem em disputas para governar os Poderes da República, com a gravidade de repetência dos erros da reprovação.
 
Há algo no ar que sugere brincadeira de crianças desassistidas, abandonadas pela civilidade, legitimidade e legalidade. Mas, na verdade, temos adultos retardados na história, com visões anacrônicas e incriadas. A disputa pelo poder entre os Poderes tem algo de ultrapassado nas sociedades avançadas nos costumes, com sólido comprometimento com as leis.
 
Mas aqui o atraso não esconde as razões por que somos incivilizados e autoritários, como característica de uma sociedade neopatrimonialista e indiferente à solidariedade e à coletividade. 

No Brasil, ter o poder é mandar, ainda que de forma individual e grosseiramente casuística, quando se exigem conjugações das forças, sob a atuação segundo a competência expressa, prevista na Constituição, em respeito ao direito à cidadania. Enquanto os Poderes punirem os melhores ideais da Carta, jamais alcançaremos o aperfeiçoamento do status ético, esgarçado pela manipulação dos princípios e preceitos constitucionais.
 
A insegurança jurídica se agrava com a tomada de decisões conflitantes no âmbito dos Poderes, como se a disputa garimpasse vantagens legítimas para a cidadania, presentemente abaladiça, por força do jupiteriano jogo de competência, como se a Constituição significasse apenas uma cartilha descartável e de conveniência de entrelopos de textos legais.
 
No momento, o gabarito constitucional escala gelatinosa, manejada pelo Judiciário (STF) sob a ideologia de técnica de hermenêutica saliente na individualidade, forjada na compreensão de interesses íntimos de cada juiz. A aplicação de princípios e preceitos constitucionais se sujeita ao juízo de conveniência e de circunstâncias, que revela fatuidade exagerada no exercício do poder.
 
Institutos que expressam os direitos e garantias fundamentais são drenados por vocações autoritárias, mas, contraditoriamente, invocados para embasar decisões em conflito com a Constituição. A construção axiológica do espírito da Lei Maior tem mais identidade com a solenidade do que com a efetividade da vontade do constituinte.
 
À falta de estabilidade constitucional, de segurança jurídica, decisões judiciais expressam concepções individualistas e personalíssimas do juiz, quase sempre desarmônica com a Constituição. O sistema de freios e contrapesos (checks and balances) tem se mostrado um fracasso, por força da grosseria com o princípio da independência e harmonia entre os Poderes.
Não se acha em outros países do Ocidente democrático um Judiciário mais intervencionista e protagonista do que o brasileiro, midiático e rocambolesco. O certo é que a crise não nasceu no seio da sociedade, mas do Estado, curiosamente no coração dos Poderes da República, que escancaram os conflitos de competência e de interesses, sempre antagônicos.
 
O medo não vem das ruas, mas do interior dos Poderes, que se comportam em estado de provocação como se quisessem duelar na Praça dos Três Poderes, na presença de público tomado por paixões políticas, incensadas pela falta de calibre no uso de competência que a Carta reservou a cada um.
 
O Brasil precisa resfolegar para caminhar com mais firmeza contra os abusos cometidos pelas autoridades públicas e minar os caminhos que se abrem para as aventuras das incertezas políticas. Já vivemos com medo e sob medo, nada agradável em face das múltiplas adversidades que estão no caminho. A ampliação dos conflitos entre os Poderes fará a democracia agonizar, realidade entremostrada, mas já sentida por todos.


* Advogado 

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