Correio Braziliense
postado em 29/05/2020 08:27
A covid-19 tem pavimentado perigoso atalho para a desinformação, dando voz a novos pseudoespecialistas. Em poucos dias, temas que demandam anos de estudo e experiência ganharam porta-vozes que disponibilizam uma enxurrada de informação, acessível nas mais diversas formas. É muito difícil conseguir discernir o que é bom ou ruim, o que é verídico ou falso. A verdade dos muitos experts da pandemia tem desorientado a todos e nos levado a lugar nenhum. Os excluídos, os invisíveis, os que vivem à margem de um país desigual ficaram ainda mais vulneráveis. Se neles pensamos, palavras de nada valem. É preciso agir.Entretanto, quando partimos para a ação, nos deparamos com algumas encruzilhadas. O que é mais importante, a vida ou a economia? Cruzar os braços ou ser solidário? Fazer filantropia ou assistencialismo? No atual momento, rotular também não é caminho. Não se consegue empoderar adultos antes de matar a fome deles e de suas crianças. E, na casa dos acometidos pela vulnerabilidade social, falta comida, os filhos choram de fome, o desespero desestrutura, a violência encontra espaço fácil.
A situação desumana que se vê nas regiões de baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no Brasil também existe em Brasília, se inquieta a 14 quilômetros do centro da capital. Tenho conhecimento da realidade de favelas, invasões ou mesmo bairros sem qualquer infraestrutura, desde jovem. Mas passei a, efetivamente, vivenciar a realidade dos vulneráveis extremos depois de uma tragédia familiar. Nos meus tempos de criança, me encantei e me surpreendi com um trabalho realizado por um grupo de estudantes acompanhado por um professor, em minha cidade natal.
A favela do Coque, em Recife, era e ainda é uma das regiões mais carentes da capital pernambucana. Os índices de mortalidade infantil eram altíssimos. O grupo de alunos desenvolveu um projeto para ensinar famílias a fabricarem sabão. O segundo passo foi explicar aos adultos sobre a importância de lavar as mãos. Por fim, professor e alunos orientaram os moradores a gerar alguma receita que pudesse ajudar no sustento dos lares.
Se o sabão que produzissem pudesse também ser vendido, ele se transformaria em recurso muito bem-vindo. Maravilhoso, não? A cadeia produtiva estava montada e funcionou bem. Ofereceu-se dignidade, reduziu-se a mortalidade infantil pela mudança de hábitos de higiene e ainda gerou-se renda. O exemplo e a determinação daqueles adolescentes liderados por um mestre pragmático me marcaram muito.
O tempo passou. Não estudei sociologia nem assistência social, me mudei e construí minha vida em Brasília, mas o projeto que relatei ficou marcado em mim. Quando o destino me trouxe o maior revés da trajetória de qualquer pai e avô, interrompendo o curso natural da vida, fui apresentado a um lugar bem parecido com a favela do Coque. Em 2013, perdi minha filha, Rafaela, e minha neta, Clara, em um acidente de carro.
E ninguém, absolutamente ninguém, está preparado para tal perda. A dor não pode ser descrita, não existem palavras que traduzam a dor que atinge a alma. Fiquei sem chão, sem esperança e sem perspectiva. Para sobreviver, precisei ressignificar tudo. A Rafa tinha acabado de concluir um mestrado em nutrição, no Canadá, e sonhava voltar ao Brasil para amparar e nutrir crianças vulneráveis. Realizar o desejo dela permitiu que eu seguisse em frente.
A solidariedade encapsulou a dor. Recordei o que vi na favela do Coque e passamos, eu, minha esposa, minha família e amigos, a idealizar o projeto chamado Doando Vida. Conheci a região de menor IDH do Distrito Federal, a Chácara Santa Luzia. Lá, começamos a concretizar o sonho da Rafaela, tirando crianças da terrível situação de vulnerabilidade nutricional e social. Desde 2014, atuamos na região devolvendo a infância às crianças e levando dignidade a suas famílias.
Fundamos o Instituto Doando Vida por Rafa e Clara. Nele, amparamos a garotada para que os pais, ex-catadores do maior lixão a céu aberto da América Latina, possam trabalhar. A missão do Instituto é cuidar dos filhos da pobreza e do descaso, alimentando-os, educando-os para crescerem numa cultura de paz, com saúde física e mental. Nosso segundo propósito é levar capacitação e condições para que os adultos possam ganhar o sustento com o próprio esforço e trabalho. Lembra da favela do Coque e do projeto da fabricação de sabão?
No Instituto Doando Vida por Rafa e Clara, acreditamos que as crianças são o presente. Se não cuidamos delas, o futuro é sombrio. É desafio diário. Lutar contra a extrema vulnerabilidade demanda doses também extremas de dedicação e amor ao próximo. Os filhos das comunidades desestruturadas são vítimas da miséria humana, convivem com a mais dura violência e tudo que vem com ela. Escolhemos, diariamente, não abandonar o abandono. As 66 crianças que acolhemos estão resgatando o brilho nos olhos, a inocência, a autoestima. Vê-las se desenvolver e proporcionar o que elas têm direito traz uma alegria que também não pode ser descrita.
O trabalho do Instituto nunca abraçou o assistencialismo. Mas, na pandemia, estamos dando o peixe para lutar contra a fome dos que estão sem renda. Sabemos que, em momentos extremos, a racionalidade se perde e os índices de criminalidade e violência doméstica aumentam. Pesquisas sérias escancaram essa verdade. Afogar-se em discursos, achismos e movimentos inócuos não mudará a realidade dos que vivem no desabrigo, no desamparo, no desdém. É preciso agir e fazer a diferença na vida dos que são visíveis aos olhos de quem quer ver. O Instituto Doando Vida por Rafa e Clara não quer mudar o mundo. Vamos apenas realizar um sonho e construir um futuro digno para as crianças da Chácara Santa Luzia e da Estrutural.
* Fundador do instituto Doando vida por Rafa e Clara
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