O nosso saudoso mestre Paulo Emílio deve estar se contorcendo no túmulo se tomou conhecimento deste verdadeiro achincalhe à cultura brasileira com a nomeação da atriz Regina Duarte para a direção da Cinemateca Brasileira, defenestrada que foi da Secretaria Especial da Cultura por incompetência.
Paulo Emílio foi um dos fundadores daquela instituição, porém, de todos, foi ele o criador mais ardoroso e apaixonado, dedicando-se por inteiro à causa da preservação da memória audiovisual brasileira. Humanista por formação, desde cedo se voltou para os problemas do Brasil e, na convivência com o mundo intelectual e político na São Paulo dos anos de 1930, torna-se fervoroso militante trotskista e um dia vai bater com os costados nos cárceres do Dops da era getulista.
Um ano e meio depois, ele veria a luz no fim do túnel porque, com outros militantes, resolveu quebrar o tédio da prisão urdindo um feito espetacular: cavaram, na calada da noite, como os personagens de A grande ilusão, de Jean Renoir, um túnel que o levou a escapar com os companheiros do Presídio Paraíso. A fuga acabou em Paris, onde se deixou ficar, vivendo a atmosfera pesada da Segunda Guerra. E, nos anos 40, André Bazin e Henri Langlois o conquistam para a causa do cinema e ele descobre o assunto que, por longo tempo, ocuparia o seu inquieto espírito.
Era Jean Vigo, cineasta marginal, já falecido, e autor de apenas três notáveis longas-metragens, entre eles, o ainda hoje badalado Zero de conduíte. Era filho do célebre anarquista Miguel Almereyda, que fora assassinado na prisão em 1917. A identificação com ele foi instantânea, e Paulo sentiu ali um apelo irreversível.
Depois de assistir aos filmes de Vigo na Cinemateca Francesa, resolveu exumá-lo, pesquisando, em detalhes, a sua carreira. Ele tornava a ver a luz na escuridão que cercava a carreira interrompida do cineasta. Escrito em francês, o livro Jean Vigo só veio a lume em 1957, pelas Éditions du Seuil, e fez cair o queixo de Bazin, que o consagrou com um artigo no France Observateur.
Redescobridor de Jean Vigo para os franceses, Paulo Emílio voltou ao Brasil sem o vezo da prática política militante para dedicar-se, por inteiro, à criação de uma cinemateca no Brasil nos moldes da congênere francesa, que tão bem conhecera. O que aconteceu por conta do conhecimento e da amizade com os amigos que o apoiaram: Antônio Cândido, Francisco de Almeida Salles e Décio de Almeida Prado, que reencontrou em São Paulo.
Vale aqui ressaltar, mais uma vez, que foi Paulo Emílio que criou, na Universidade de Brasília (UnB), o primeiro curso regular de cinema no início dos anos de 1960. Quando se retirou com o grupo de mais de 200 professores — a célebre diáspora em protesto contra a ditadura — deixou-nos também, como mimo, uma lembrança imorredoura: o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, por ele inventado com os alunos.
Quanto à Cinemateca Brasileira, ela foi fundada em 1946 sob os aplausos da comunidade do cinema, mas continuamente enfrentou as maiores dificuldades para cumprir a nobre e necessária função, sempre à míngua de recursos para prover as instalações e o restrito quadro de técnicos e pesquisadores. No transcurso de sua existência, foi vítima — justamente pela carência de recursos — de quatro incêndios que deixaram um rastro de perdas irreparáveis.
Era mantida a custo, contando apenas com o apoio ora da iniciativa privada, ora de eventuais convênios com organismos públicos. Mesmo assim, é o maior arquivo de filmes da América do Sul, o que não impediu de, em 2013, o Ministério da Cultura — saliente-se, na gestão da paulista Marta Suplicy — destituir a sua diretoria e suspender a sua autonomia operacional. As consequências vieram a galope com o incêndio de 2016, quando arderam mais de mil rolos de filmes antigos e referenciais.
O tempo passou e, neste momento, Regina Duarte, sem que o mais reles item de seu currículo recomendasse assumir a direção da Cinemateca, foi para lá despachada, à mercê do desvario do presidente Jair Bolsonaro. Justamente no mesmo instante em que o cinema brasileiro em peso se levanta em providencial alarido numa carta com mais de 10 mil assinaturas em defesa daquela instituição que, até esta data, não recebe a parcela do orçamento anual que lhe cabe como órgão amparado pela Associação Roquete Pinto. É mais um acinte à cultura brasileira.