A morte por suicídio de Flávio Migliaccio, há algumas semanas, mexeu com o imaginário coletivo dos brasileiros. O ator costumava representar pessoas simples em sua longa carreira na televisão e no teatro. Talvez, por isso, nós o percebêssemos como alguém próximo, conhecido. Fomos criando identidade com os personagens, tanto os simpáticos, quanto os ranzinzas. E, de uma hora para outra, ele nos deixa, no meio de uma pandemia que nos trouxe muita insegurança e incerteza.
Deixar de viver é uma saída considerada por muitos em momentos de crise. Embora ainda seja tabu admitir isso, a ideia de abandonar a vida aparece em pessoas de todas as idades. Em estudo com mais de 1.000 adolescentes em Santa Catarina, por exemplo, 14% admitiram já terem pensado seriamente em não mais viver. E esse número preocupante está abaixo do índice mundial, de cerca de 20% da população jovem. É evidente que há uma distância entre “considerar o ato” e tentar efetivamente executá-lo.
Entre os profissionais de saúde mental, costuma-se falar em passos em relação a comportamentos suicidas. O primeiro é ter desejado estar morto ou ir dormir e não mais acordar (o que chamamos de ideação suicida passiva), considerado um sinal, mas de baixo risco, principalmente quando o pensamento é eventual. As perguntas para identificar o risco vão então em um crescente, que incluem pensamentos de se matar e a organização de planos para a realização desses pensamentos; e, depois, a intenção, com data marcada e comportamentos concretos para terminar com a própria vida — o que seriam as situações de maior risco.
A ligação do comportamento suicida com doenças mentais — principalmente depressão e uso excessivo de bebidas alcoólicas — é algo bastante estabelecido. Outros fatores relacionados incluem a exposição a situações de abuso, violência, isolamento emocional e dor crônica, assim como momentos de crise, incluindo término de relacionamento, morte de pessoas próximas e até problemas financeiros — todos relacionados com a sensação de falta de esperança.
Em resumo, o suicídio tem determinantes complexos e não é incomum que características impulsivas façam parte da equação, particularmente em homens, principalmente quando conjugadas ao consumo de álcool e outras drogas. Ao que parece, a impulsividade faz com que os homens, embora tentem menos do que as mulheres, sejam mais “eficazes” ao realizar o ato suicida do que elas.
A pergunta que não quer calar é: deve-se falar sobre o assunto? Isso não pode funcionar como estímulo à própria prática do suicídio? A literatura recente tem mostrado que, ao contrário, conversar sobre o tema, de modo sério, com base científica, pode ser uma das melhores maneiras de prevenção do ato. Não estamos falando de divulgar episódios pela imprensa e pelas mídias sociais, falando de detalhes pessoais mórbidos, ou o método utilizado por determinado indivíduo. Isso, sim, poderia estimular o chamado suicídio por contágio.
Estamos falando aqui de buscar compreender e lidar de modo responsável com o desespero e a dor, de tentar acompanhar o percurso de sentimentos que, às vezes, nascem e se desenvolvem nas pessoas. Por seu lado (e isto é muito importante), sentimentos suicidas são temporários. O que aparece como a única solução em um momento frequentemente muda de figura minutos, horas ou dias depois. E é justamente aí que técnicas de prevenção têm sido propostas nos últimos anos.
O Plano de Segurança para Prevenção do Suicídio, criado por pesquisadores da Universidade de Columbia, é um dos métodos que podem ser utilizados individualmente ou como parte de um programa de tratamento. Trata-se de intervenção breve e construída de maneira colaborativa entre profissional e paciente com ênfase em uma lista de estratégias de enfrentamento para serem utilizadas durante o início de uma crise suicida.
Seu objetivo é auxiliar o indivíduo a recobrar o sentimento de controle ao ter em mão uma lista de recursos objetivos e individualizados que o ajudarão a enfrentar a angústia em momentos em que a capacidade de resolver problemas se encontra muito reduzida. Comportamentos suicidas não são raros, principalmente em épocas de crise. A saúde mental precisa e pode colaborar com os que precisam de ajuda nessas horas.
*Psicóloga clínica, mestre, doutora e pós-doutora em psicologia médica, foi professora associada da Columbia University, e pesquisadora visitante na City University of New York (Cuny)