Opinião

Dos navios negreiros aos pátios da cela

"O encarceramento no Brasil é fundado na escravidão negra, expressão latente do genocídio antinegro"


As prisões são, antes de mais nada, locais de punição e de castigo na forma mais coercitiva da violência do Estado. Contudo, essa não é característica exclusiva da contemporaneidade e foi na busca pela compreensão de como chegamos ao atual contexto carcerário brasileiro que encontrei as evidências que apontam: o encarceramento no Brasil é fundado na escravidão negra, expressão latente do genocídio antinegro.

A escravização de povos do continente africano funcionou por centenas de anos, provendo mão de obra para acumulação de grandes riquezas no mundo, especialmente no continente europeu. Foi também um emaranhado das mais variadas e violentas torturas praticadas contra seres humanos até hoje. Além do tronco, instrumentos outros de ferro compunham o arsenal punitivo usado para castigar escravizados que “desobedeciam” e resistiam à feroz opressão.

Não são apenas heranças e memórias coloniais que vinculam as instituições prisionais atuais ao período da escravidão. O cativeiro e toda violência empreendida são pilares estruturantes do sistema prisional. Não por acaso, a institucionalização da legislação colonial dos castigos de escravos está intimamente ligada à fundação da Intendência de Polícia, à vinda da Coroa Portuguesa para o Brasil e, portanto, da constituição do Estado brasileiro.

Nesse contexto, as prisões eram uma espécie de “depósito provisório”, pois as sentenças condenatórias se davam pelos suplícios. As prisões, desde sempre, funcionaram acima de sua capacidade. Foi na pesquisa pelas prisões do período colonial que me deparei com o Calabouço, prisão de regime disciplinar destinada exclusivamente aos escravizados, a mando dos senhores para que fossem castigados. Com esse nome, há que imaginar que as condições sanitárias eram péssimas, sem nenhuma ventilação, com calor, odores diversos, além de escassez de água e comida.

Prisão só para negros com penalidades vinculadas a castigos e torturas corporais, o Calabouço foi o que chamo de “depósito dos indesejáveis”, pois abrigou enorme parcela de africanos remetidos a correção. Dos registros de correção que analisamos, no primeiro volume, apesar da ausência de dados como nome e idade, cerca de 70% eram denominados apenas como “hum moleque” ou “huma moleca”, termo utilizado à época para se referir à criança e ao adolescente negro. Em outros registros, a maioria massiva tinha até 29 anos, o que era idade avançada (considerando as condições de sobrevida), fator que se relaciona com as estatísticas de morte atuais e do padrão de encarceramento que se preservou.

Os dados estão distantes de expressar valores absolutos do período, mas conseguimos amostra significativa acerca do funcionamento da política correcional na transição do Brasil Colônia para Metrópole. A constituição estrutural racista do Estado moderno implica o racismo institucional, que é a regra das engrenagens do Estado. As instituições são as agências de concentração de poder que perpassam os interesses políticos e econômicos do Estado e, portanto, compreendemos a instituição prisional como mecanismo operativo do racismo e da manutenção da concentração de poderes.

Dessa maneira, a prisão é fantástica fábrica de cadáveres, e o encarceramento, o atalho institucionalizado para empilhar corpos [negros] indesejáveis. Se havia suspeitas de que a engrenagem racista opera o mesmo sistema prisional desde a Colônia, a partir dos meus estudos chego à conclusão de que o racismo estruturou e estrutura a dinâmica penal do Estado brasileiro. É de extrema importância destacar o crescimento constante do encarceramento e, nesse contexto, o negro — que como coisa foi traficado, como coisa é jogado aos pátios de cela nos estabelecimentos prisionais.

O que esperar de um país que prende, desde sempre, sua população na idade mais ativa? Quem lucra com as prisões? O preço que se paga pela aclamada segurança pública são as vidas [negras] custodiadas pelo Estado, fadadas a torturas diversas como a própria condição de prisão provisória e preventiva, a superlotação, as condições insalubres, a péssima qualidade de alimentação, a recorrência de massacres e a extensão da pena aos familiares.

Infeliz exemplo é o contexto de pandemia do coronavírus, em que as visitas estão suspensas em quase todos os presídios do país, privando as pessoas de uma série de direitos e adoecendo os familiares, impedidos de manter visitas ou mesmo de terem notícias dos queridos. É imperativo nos libertarmos das grades, demolir prisões. Que imagens como a implosão do Carandiru, ainda muito presentes no imaginário do país, sejam ordinárias, na construção de uma sociedade sem aprisionamento injusto e injustificado e sem racismo.
 
*Assistente social, mestre e doutoranda em política social pela UnB, é integrante da Agência Nacional pelo Desencarceramento