Opinião

Governadores X presidente da República

''As autoridades públicas aqui e lá fora, em sua maioria, acordaram para esse momento e passaram a fazer movimentos no sentido de defesa da vida a partir da concepção de realização da solidariedade social como elo que deve consolidar as relações entre as pessoas''

O título deste artigo pode soar provocativo, mas, em verdade, reflete uma consequência da chegada da Covid-19 ao país, em que pese o rastro de desgraças que esse inimigo invisível vem deixando mundo afora ao ceifar milhões de vidas humanas, por estar nos fazendo quebrar paradigmas antes intocáveis, refletir, repensar conceitos e nos remeter a uma realidade nua e crua de que vimos vivendo numa sociedade extremamente egoísta e pouco solidária. Esse fenômeno não se dá, unicamente, nas relações sociais, mas se espraia para o mundo político. 

As autoridades públicas aqui e lá fora, em sua maioria, acordaram para esse momento e passaram a fazer movimentos no sentido de defesa da vida a partir da concepção de realização da solidariedade social como elo que deve consolidar as relações entre as pessoas.

No Brasil, independentemente de colorações ideológicas, vimos dezenas de governadores e prefeitos adotarem postura de enfrentamento dos novos desafios gerados pela Covid-19. Essa proatividade gerou embates com o presidente da República, representante maior da União Federal, criando um ambiente desagradável e de instabilidade política, mas bastante propício para reinserir o debate sobre o tipo de Federação que temos e a queremos.

O federalismo é forma de organização do Estado, normalmente vinculado ao sistema republicano, que consiste na reunião de vários entes subnacionais, num só, cada qual com certa independência, autonomia interna, mas obedecendo a todos, às regras da Constituição, ou seja, há uma repartição de poder, ou competências, entre o Estado central e os estados-membros.

A Constituição de 1988 pretendeu inaugurar no Brasil o federalismo de cooperação, promovendo uma repartição de competências fundada no princípio da predominância do interesse, segundo a qual à União caberiam as matérias de interesse geral, nacional, ao passo que aos estados-membros caberiam as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos municípios os assuntos de interesse local. No entanto, acabou criando um federalismo “à brasileira”, que privilegia a União por concentrar nela a maioria das competências sob o fundamento de que cabe a ela legislar de forma geral e às demais unidades federadas ficam com o resto.

A prática demonstra que os deputados estaduais e os vereadores têm extrema dificuldade em apresentar projetos de lei, pois o que lhes sobra em termos de competência sempre esbarra num possível conflito com as ditas normas gerais emanadas da União, que acabam por prevalecer em razão da hierarquia das leis.

A conveniência política, especialmente no tocante ao exercício do poder por este ou aquele grupo com o objetivo de beneficiar aliados como forma de se manter no poder, vem impedindo que se busque um ponto de equilíbrio federativo efetivo. Com isso, mais e mais, se ampliam a voracidade e o poder da União, afastando-se qualquer racionalidade do sistema por impedir que seja criado um padrão mínimo de igualdade na prestação de serviços, pois a autonomia dos entes federados, para existir e ser sentida pela sociedade que vive nos estados e nos municípios, depende da existência de recursos.

Para além disso, cabe aos estados e municípios enfrentar os novos conflitos sociais e do trabalho decorrentes de um mundo novo, em que as informações, verdadeiras e falsas, são mais ágeis do que a capacidade do Estado de, pelos menos, conhecê-las, quanto mais de enfrentá-las, o que reforça a imagem de ineficiência administrativa.

Num Estado federal, em que a maioria das competências se concentra na União, por óbvio, se aprofundará o fosso entre os desejos e exigências da sociedade e as efetivas possibilidades de atendimento pelos estados e municípios, inviabilizando soluções customizadas às realidades locais, em todos os campos da gestão, mas mais especialmente naqueles que são os mais dispendiosos (saúde, segurança e educação).

Os números bem demonstram o desequilíbrio e a total inversão de papéis: a União concentra a maior parte da arrecadação tributária (68%), enquanto os estados contam com apenas 25%, e os municípios, com 7%. Inicialmente, a União aportava ao SUS 80% dos valores; hoje, o percentual não chega a 40%. No que diz respeito à educação, é igualmente conhecido que os estados gastam mais de 80% do montante total, enquanto a União não investe nem 12%. Os gastos com segurança pública (polícia militar, polícia civil, sistema prisional) ficam sob o encargo dos estados.

E em que a União gasta? Basicamente na manutenção de uma máquina burocrática imensa e no pagamento da Previdência e da dívida pública. Para além disso, a União ainda concede renúncias a tributos cuja arrecadação deveria ser compartilhada com os estados e municípios (exonerações do IPI e deduções no IR), sem falar na injusta desoneração do ICMS sobre a exportações de produtos semielaborados, sem a devida e justa compensação aos estados exportadores (defasagens da Lei Kandir).

O movimento dos governadores de se contrapor àquilo que o chefe do Executivo federal considera ser o correto no tocante ao enfrentamento da pandemia em nosso país deve ser recebido não como uma negação ao federalismo, mas como o despertar na busca do equilíbrio federativo, o que só se efetivará com a correta divisão de competências para legislar, conferindo-se maiores poderes aos estados.
 
* Presidente da Comissão de Defesa da Federação da OAB Nacional, foi presidente da OAB Nacional (2010/13)