Opinião

O preço da vida




“Os idosos terão de morrer para salvar a economia.” Essa é a chocante orientação de Dan Patrick, governador do Texas. “Voltem todos ao trabalho”, disse ele, emendando: “os idosos cuidarão de si mesmos e não vão sacrificar o país para salvar suas vidas.” Esse governador tomou posição arrojada a respeito do mais sério dilema que os médicos enfrentam quando, na falta de recursos, salvam apenas um de dois doentes. É a escolha que eles mais detestam.

O médico Luiz Henrique Mandetta está fazendo de tudo para postergar o contágio do coronavírus. Conhecendo a fragilidade do nosso sistema de saúde, ele busca evitar a generalização daquele dilema para seus colegas e a perda de entes queridos para as famílias. Ele conhece bem a extensão da catástrofe se os brasileiros, jovens e idosos, todos juntos, se infectarem repentinamente em meio à falta de leitos, UTIs e assistência médica. Os casos de outros países têm sido apavorantes.

O mesmo desconforto se coloca no confronto entre os modelos de isolamento horizontal e vertical. Está comprovado que o primeiro salva milhões de vidas ao reduzir o alastramento da infecção, mas tem impacto devastador na economia. O segundo faz o inverso. Daí a questão: cabe aos governos privilegiar a vida ou a economia?

Por trás de decisão tão delicada, está o preço da vida. Nos campos da justiça, religião e filosofia, a vida não tem preço, pois é um bem superior, a ser preservado em quaisquer condições. No campo da economia, porém, a vida não só tem preço como esse preço é calculado. (Ver, por exemplo, he value of human life, http://www.socialvalueuk.org/app/uploads/2017/08/Valuation-of-a-life.pdf).

Mas o conceito utilizado pelos economistas refere-se ao “valor estatístico da vida”, que é muito diferente do valor humano da vida. No valor estatístico entram os recursos mobilizados pela família e pela sociedade para manter a vida e adiar a morte. No conjunto, esses recursos indicam o preço da vida. Entretanto, a vida humana vale também pelo que as pessoas são no campo dos valores, atitudes, condutas, atenção, apreço, geração de satisfação, capacidade de amar e serem amadas dentro da família. Por mais que se detalhem as dimensões, não há como quantificá-las e muito menos como calcular o valor agregado da vida humana.

O governador do Texas confunde os dois conceitos. Uma coisa é a escassez de recursos – o que pesa no valor estatístico da vida. Outra coisa é definir como política pública o abandono dos idosos em favor da economia, passando por cima do valor humano da vida. Deixemos para os médicos fazer a difícil escolha e amargar a tristeza que os acomete quando, devido à falta de recursos, decidem sobre quem deve viver e quem deve morrer.

O que o ministro Mandetta busca é exatamente afastar as pessoas do contágio enquanto a sociedade arregimenta a maior quantidade possível de recursos para curar os que adoecem e, com base nisso, reorganizar a produção. Não há dilema nenhum nesse campo. Mesmo porque, na tarefa de salvar as vidas e a economia, nenhum governante, nem mesmo o governador do Texas tem procuração divina para desprezar o valor humano da vida e privilegiar o seu valor estatístico.

Nesse campo, penso haver também importantes tarefas para todos nós. O impiedoso vírus ataca ricos e pobres, jovens e idosos, homens e mulheres. Do nosso lado, isso demanda humildade e responsabilidade. Temos de ajudar a evitar a sua entrada nos corpos dos nossos semelhantes. O vírus está nos mostrando a necessidade de agirmos de forma solidária porque somos mutuamente dependentes. Só podemos cuidar de nós se cuidarmos dos outros. A lição é clara. O coronavírus exige de todos nós uma separação física e uma estreita aproximação nos campos da solidariedade, generosidade e amor ao próximo.

Isso será crucial para salvar muitas vidas.