Em tempos de alta comoção e repercussão das críticas – justificadas ou não – ao sistema prisional, existe um denominador comum: as atividades prisionais não podem ser suspensas. Imprescindível, portanto, a ponderação entre a manutenção da operação do sistema prisional e a segurança e saúde dos agentes penitenciários, médicos, visitantes e dos próprios presos.
Estudos indicam que as prisões podem se tornar verdadeiras incubadoras de doenças. Dados de fevereiro deste ano apontam ao menos 550 casos do vírus nas prisões chinesas, além de uma onda de demissões de autoridades prisionais devido à ausência de medidas preventivas e de controle.
Além da superlotação e a notória deficiência dos mecanismos de ventilação e salubridade dos presídios, a própria rotina prisional propicia a proliferação das doenças e o agravamento geral do quadro das vítimas. O baixo teor nutritivo da alimentação, o sedentarismo, o eventual uso de drogas e a fragilidade emocional inerente à condição de preso (as taxas de suicídio em presídio são quadruplicadas) formam um coquetel de condições perfeitas para tal.
Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) indicam que a incidência de HIV é 138 vezes maior nas cadeias em comparação à população em geral. Além disso, pesquisas da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz indicam que cerca de 10% dos presos têm tuberculose ativa, taxa cerca de 30 vezes superior à da população do estado do Rio de Janeiro. Como se sabe, tanto a tuberculose quanto o HIV são condições de risco antecedentes em se tratando do novo vírus. Inclusive, a imunodeficiência adquirida dos indivíduos portadores do HIV, associada ao maior risco de infecções secundárias, agrava ferozmente o número de óbitos em decorrência da Covid-19.
Somado a isso está a inevitável rotatividade dos agentes penitenciários que, nesse cenário, figuram na perigosa e ingrata posição de possivelmente contrair e transmitir o vírus. Como forma de se antecipar aos riscos do vírus, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) anunciou a suspensão imediata das visitas sociais nos presídios federais por 15 dias. Medidas similares foram tomadas pela Superintendência da Polícia Federal em São Paulo e pela administração de presídios estaduais. Além da suspensão das visitas, foi determinada a suspensão da saída temporária de Páscoa.
Outros experimentos contra a propagação do vírus nos sistemas prisionais estão sendo colocados em prática internacionalmente. Nos Estados Unidos, começam a aparecer os primeiros pedidos formulados por advogados para a soltura de detentos provisórios, sob a alegação de “provável crise humanitária”, com potencial contaminação dos presídios pelo vírus. O Irã, terceiro país no mundo com maior número de pacientes, decidiu pela liberação temporária de mais de 80 mil presos. O Brasil deve seguir por caminho parecido.
Nesse cenário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu uma série de recomendações aos juízes e tribunais, como a revisão das prisões provisórias — isto é, situação em que o detento ainda não foi condenado em definitivo – com prioridade para gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por crianças de até 12 anos, idosos e outras presos que se enquadrem no grupo de risco para a doença.
Além disso, o CNJ recomendou a suspensão da apresentação em juízo de presos em liberdade provisória, bem como a excepcionalidade da decretação de novas prisões preventivas. Decisões no mesmo sentido estão sendo proferidas desde semana passada, quando a propagação do vírus se agravou no Brasil. No último dia 12, o juízo da 13ª Vara Criminal de Salvador/BA substituiu a prisão preventiva de dois acusados por medidas cautelares diversas. Entre elas, o comparecimento mensal obrigatório, o recolhimento noturno e a proibição de se ausentar sem comunicação prévia. A medida pode ser revogada a qualquer momento, e o próprio juiz reconheceu o caráter excepcional e humanitário da decisão.
A repercussão do vírus no mundo jurídico também mobilizou o Supremo Tribunal Federal (STF). O Ministro Marco Aurélio negou provimento a um pedido de tutela provisória formulado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) na ADPF 347, pela liberação temporária de detentos em situação de risco. Apesar do pedido não ter sido provido por questões processuais, o ministro remeteu os autos ao plenário e aproveitou a oportunidade para expor sugestões aos juízes de execução.
O ministro sugeriu que fossem examinadas a liberdade condicional a encarcerados inseridos em grupos de maior vulnerabilidade, como os com idade igual ou superior a 60 anos, o regime domiciliar aos soropositivos para HIV, diabéticos, gestantes, lactantes.
No último dia 18, o plenário do STF decidiu por não referendar as recomendações feitas pelo ministro Marco Aurélio sob o argumento de que o pedido foi feito por parte ilegítima. Os ministros ressaltaram, ainda, que o Conselho Nacional de Justiça tomou medidas para garantir a segurança e a saúde nos presídios, de modo que não seria necessária a judicialização da questão.
Para o bem ou para o mal, o novo vírus pode representar o estopim de nova mentalidade acerca da sistemática e necessidade de expansão das políticas públicas de saúde: a de que, para além das grades e muros, os presídios não são um mundo à parte da sociedade.
* Advogados especialistas em direito criminal